Reflexos do Amor (Marli Machado)



        (Imagem: http://www.ditopelomaldito.com.br/mais-do-que-um-reflexo-no-espelho/)
Reflexos do amor
(Marli Machado)*

Com o passar dos anos, seu rosto ficou mais marcado, vejo sulcos profundos em sua pele, daqui onde estou. Posso ver com clareza cada fissura em torno de seus olhos, de sua boca, vejo sua testa riscada com marcas profundas, outras sutis. Seu rosto foi ficando mais devastado, no entanto, mais bonito.

Estamos juntos há mais de dez anos, e ainda hoje me comovo com sua beleza silenciosa. Quando ela me olha, mesmo sabendo que ela não me vê, sou capaz de sentir certa emoção. Seus olhos parecem estar sempre em algum lugar desconhecido, os vejo brilhando, estonteantes com seu verde acinzentado, contornados por cílios longos espessos, características que dão ao rosto um olhar felino, o que torna essa mulher de uma beleza incomum, rara. Às vezes, não sou capaz de ver seu rosto, apenas seus olhos, como se eles tomassem vida própria. Como se eles descolassem do rosto, e me olhassem, querendo me perguntar algo. Se eu pudesse tocá-la. Se eu, ao menos, pudesse lhe dizer algo.

Quando mais jovem, ela carregava no rosto uma alegria quase infantil, entusiasmada, ela me olhava alegre, pueril, sorria e me contemplava. Eu a via algumas vezes ao dia, tenho o privilégio de ver sua transformação diária. De manhã, seus cabelos tão rebeldes, desalinhados, armados e descabelados, o louro dos seus cachos misturavam-se com o branco acinzentado que nascia de suas raízes, revelando um pouco mais da presença marcante do tempo sempre presente. Os olhos inchados, às vezes tristonhos, sua boca carnuda. E quando ela estava triste, seus olhos não conseguiam esconder. Perdiam o brilho, a vivacidade, ficavam opacos, sem vida, mortos. Eu me constrangia com sua tristeza, sempre calado, não era capaz de lhe dizer nada.

Ela foi envelhecendo e aquela alegria pueril não se perdeu, mas adquiriu nova roupagem. Hoje, vejo em seu rosto mais velho uma certa sobriedade, certa sabedoria marcada pelo peso de existir. Seu rosto riscado revela que essa mulher viveu mergulhada em uma vida de intensidade, não é afeita para caminhos fáceis, escolheu viver de verdade, sustentando o peso de ser ela mesma. Sabe que a trilha que seguiu teve obstáculos, o caminho que nos leva até nós mesmos é o mais pantanoso. É sempre muito difícil encontrar sua própria letra. Somos mergulhados no desejo alheio, nas vontades do outro. Ela foi, pouco a pouco, se despindo, dos desejos da mãe, do pai, dos amores futuros, foi vivendo no corpo o desmanchar de si, a cada ruptura necessária, para que pudesse ser, para que pudesse existir.

Aprendeu a renunciar os prazeres fáceis de atender ao outro, por ter que manter sua própria integridade enquanto indivíduo. Mas sabia que a vida é feita de escolhas, e perder um pedaço de si composto pelo outro é um caminho necessário. Se deslocar do outro, dos outros, era tarefa muito complexa e dolorosa. Sem referência, apenas ser si mesma era o mergulho fatal que necessitava para a grande queda. Da queda das ilusões, dos ideais, das representações, das consistências e identidades. Nada disso importava mais, era o mergulho necessário e tão desconhecido, não sabido. Agora, não tinha mais volta, o passo havia sido dado, recuar é improvável. Continuar o mergulho em suas próprias profundezas para resgatar o que é mais seu, mais singular, lhe parece, agora, que o salto já foi dado, um caminho assustador, impensável, impossível.

Foi tomada por medo, desespero, porque quanto mais mergulhava em si, mais encontrava o nada, o absolutamente nada. Ela que sempre se orgulhou de seus preenchimentos de saber, de conquistas, agora se vê diante do vazio pleno, sem face, nem cor, nem sentido. Ela me olha, mesmo não me vendo, me diz com seus olhos do seu desespero humano, nada mais vivo nestes seres do que quando estão com medo. Eu gosto de ver suas intensidades, sinto um pouco ela, e tenho vontade de lhe dizer que a compreendo. Silencio e me restrinjo a minha condição de espelho. Se ela soubesse como gostaria de sentir esse desespero humano, me sentir vivo, por um instante. Se ela soubesse que ela ficou mais bela e profunda quando decidiu uma vida nua, só sua.

E só posso dizer dela pelo que ela se deixou mostrar para mim. Vi seu rosto envelhecendo. Acho que pode parecer um pouco grosseiro falar dessa maneira, mas envelhecer para mim pareceu ser uma dádiva, vê-la envelhecendo foi o modo como eu descobri sobre o tempo e sua passagem. Ela era a minha única referência sobre a existência dele. Porque para um velho espelho o tempo não passa, ao menos não tão depressa como foi para ela. Sei que sou apenas um espelho, confesso que um pouco curioso, e até mesmo indiscreto, mas falar de sua existência me torna um pouco humano também.

Gosto de falar dela e gosto de dizer: me sinto um pouco humano. Um dia ela chegou e me encarou de tal modo que senti que finalmente ela me via, ficou algum tempo assim, eu me senti observado, será que ela estava me vendo? Já imaginava mil coisas, cenas de nós dois conversando e eu podendo lhe dizer. Minha fantasia foi interrompida por um sussurro “Maria Candido Ferreira” e se fez silêncio novamente, como se o peso do nome despertasse nela alguma lembrança tão dolorosa que a emudeceu. Ela é mais silêncio do que voz, seu silêncio me comove, porque me faz sentir que por via dele mantemos um elo, é no seu silenciar que me comunico com ela.

Maria Candido Ferreira tinha um modo nobre de se comunicar com as coisas. Quando estava nua diante de mim, era de uma elegância respeitosa, seus gestos, seus seios bem desenhados, que mesmo com o tempo se mantiveram bonitos e agradáveis de se olhar. Eu olhava descaradamente seu corpo de mulher e, posso garantir, ficou muito mais bonito com a passagem do tempo. Seus gestos se tornaram mais gentis, mais suaves. Se antes havia pressa em seus movimentos, hoje, mulher e tempo fizeram as pazes, sem pressa, alinhada à sua temporalidade e espaço corporal, o que eu via diante de mim era a imagem de um espetáculo fascinante. Uma mulher fica muito mais elegante quando abriga em seu corpo a passagem do tempo.

Mas ela também parou de brigar com ela mesma, como espelho tenho o privilégio de ver a passagem e o tempo das mudanças na mulher. Se antes ela escondia-se por trás de suas roupas, colares, maquiagem, hoje ela se despe, se desnuda de si e de suas ilusões. Quando se arruma, sua cautela já não é com os acessórios, mas com a pele, com o cabelo, com o sorriso. Quando essa mulher sorri, eu não sei descrever o que sinto, acho que vou me arriscar, é amor o que sinto. Se é que espelhos podem sentir, mas como sou eu no controle dessa narrativa, acho justo poder ser habitado por sentimentos tão nobres.

Amo essa mulher? Ou amo a imagem que ela reflete em mim? Amo-a ou me amo através dela? Por meio dela posso exercer o que tenho de mais ilustre na função de um espelho, refletir uma imagem. Então a amo por que me amo exercendo uma função? É isso o amor? Amamos o outro porque estamos amando o que somos? Não tenho garantia sobre o que estou dizendo. Minha visão de espelho é tão limitada à imagem refletida que não sou capaz de me descrever. E me interrogo, afinal, quem sou eu? Que espécie de espelho eu sou?

Ela chegou tarde hoje, seu rosto está diferente, estou vendo mais uma ruga no canto da boca, seus olhos estão mais vivos e sorriem, o que aconteceu? Ela me olha e diz: Maria Candido Ferreira, nunca é tarde para amar. Depois, fica em silêncio e sorri, como se sorrisse para mim, eu tento devolver o sorriso e dizer que concordo com ela, o amor não tem idade, mas como não sei dizer, só sei refletir, tento mostrar o seu reflexo mais belo e gentil, ela sorri como se pudesse me entender. Mulher e espelho se encaram, sorriem. A solidão de uma mulher é preenchida por vazios de lembranças e quedas de ilusões, mas, de tempos em tempos, o amor chega, e com o passar do tempo ele vem mais sereno, sem pressa, sem desespero, ele chega manso, pode se instalar sem esquecer que a solidão é contingência.

Maria Candido Ferreira me ensina o amor, serena de um jeito que nunca a vi. Acho que o amor com a idade fica mais inteiro. O amor ocorre quando não precisa se esconder, ela se mostra sem reservas nem receios, seus medos diluíram-se nas frestas das descobertas de si mesma, mulher madura, segura de seus desejos e consciente de seus medos. Me olha, se despe, eu diante de sua nudez, emudecido, reconheço a beleza de ver uma pessoa por inteiro. Descubro que eu e ela nos diluímos nesse cenário. Refeito, me fiz presença. Eu mulher/refletida/no/espelho, desvendo um mistério. Eu seria apenas um objeto a refletir, hoje, me reconheço, sou o reflexo de uma mulher. Me despindo diante de sua nudez me torno mais humano. Perdi meu medo de sorrir. 
* Marli Machado participou do Curso de Escrita Criativa, turma 2019

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