Autorretrato de uma ficção (Andreza Pandulfo)


Velório da noiva, de Maria Auxiliadora da Silva. Óleo e massa de poliéster sobre tela. 1974. Acervo MASP. Foto: Andreza Pandulfo
 
Autorretrato de uma ficção
(Andreza Pandulfo)*

A noiva morreu. Foi apenas o tempo de fazer viúvo o noivo. Inconsoláveis, amigos e familiares lamentavam a morte no dia errado. Alguns, desconfiados, até aguardavam um tipo de encenação no altar: “Ela é artista”, diziam, “… deve vir surpresa por aí”. Não veio.
Os detalhes pouco importam, pois sabemos o final da personagem principal. Mas fato é que a história do casamento que virou velório foi contada por todos que a viram. E, como toda história narrada em terceira pessoa, é carregada de versões e significados diversos atribuídos àquele dia e àquela noiva.
Quando uma mulher se casa, há quase uma certeza geral de que aquele é o dia “mais importante de sua vida”. É difícil afirmar que aquele seria o dia mais importante da vida de Maria Auxiliadora. O que se sabe é que ela teve, talvez, outros dias tão ou mais importantes. Quando vendeu seu primeiro quadro na Praça da República ou quando fez sua primeira exposição individual no consulado estadunidense, por exemplo. Provavelmente, também foram importantes para ela alguns momentos com um dos 17 irmãos ou alguma cirurgia da luta contra o câncer. Porém, os valores associados ao matrimônio conferem à morte da mulher nessa situação um infortúnio ainda maior do que em outras.
Sim, é preciso enfatizar a condição da mulher. Fosse um homem, é provável que no velório houvesse piadas estilo “salvo pelo gongo”, acompanhadas de risadas discretas. Mas esse também dificilmente seria o caso da artista. Embora em seus últimos anos a morte fosse tema comum em suas obras, registrá-la na figura de uma noiva, com a delicadeza representada na imagem, denota, no mínimo, certo respeito ao sacramento. Isso não determina, no entanto, que o casamento era um sonho para ela. O que se sabe de um sonho realizado pela Auxiliadora, que morava em São Paulo desde criança, foi ter visto sua primeira exposição no MASP. Dos não realizados, é possível destacar a primeira exposição individual no mesmo museu, só realizada quando a noiva já era morta. Mas possivelmente o maior sonho não realizado de Maria Auxiliadora foi se curar do câncer. Esse possibilitaria que ela vivenciasse todos os outros, até – quem sabe? – casar-se vestida de noiva.
Outra característica atribuída ao casamento é a entrega. Maria Auxiliadora não teve tempo de entregar-se a uma união tradicional, mas entregou-se à arte. Fisicamente, inclusive. Utilizava o próprio cabelo para dar volume ao corpo de seus personagens, uma das marcas do seu estilo. Mas mesmo essa entrega durou pouco. Foram 39 anos, apenas sete deles destinados integralmente ao trabalho como artista. Suas obras retratam sua vida, mas também a importância e a militância do seu povo. As cores vivas e a alegria com que representou negros e negras, e o destaque que deu a essas pessoas em suas pinturas fizeram dela uma artista singular.
Mas de todos os chavões mencionados até aqui, há um que ninguém pode negar. Um casamento é o início de uma nova vida. Às vezes para o bem, às vezes para o mal. Na maioria das vezes, para o bem e para o mal. Mas a noiva morreu. Morreu no início dessa nova vida que, com certeza, revelaria surpresas hoje impossíveis de adivinhar. Morreu deixando viúva gente que nem sabe que um dia houve uma noiva que pintou a própria morte.

Conheça mais sobre a artista Maria Auxiliadora no link: http://www.infoartsp.com.br/agenda/maria-auxiliadora-vida-cotidiana-pintura-e-resistencia

* Participou do Curso de Escrita Criativa - turma de 2019.

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