O Menino Carvão (Ricardo Cândido)
(Trabalho de Rodrigo Braga - Google Images)
O MENINO CARVÃO
O MENINO CARVÃO
(Ricardo Cândido)*
Oitenta anos se passaram e de suas
mãos ainda escorre a mesma tinta preta de outrora. A porcelana da xícara
trepida sobre o pires enquanto olha o grande letreiro da esquina principal.
Ao pensar que tudo começou na volta às aulas
do verão de 1932, o jovem Arthur não sabia que ali teria início o longo caminho
do que, hoje, para ele, não passou de uma breve jornada.
Arthur estava ansioso com o começo
das aulas em sua nova cidade. Ele mal continha a emoção de poder fazer novos amigos
e, com a ajuda do pai, o pequeno garoto foi feliz para a escola.
Na volta do primeiro dia, o pai de
Arthur serviu o almoço e, como sempre foi calado, assim permaneceu durante toda
a refeição. Seu silêncio em nada o incomodava, mas o de Arthur sim. Seu filho
sempre foi animado e comunicativo, um garoto muito esperto para sua idade, mas,
desta vez, estava calado. Calado até demais para o retorno às aulas.
- Algum
problema, Arthur?, perguntou o pai olhando atentamente para o menino que
brincava com a sopa.
- Não. Por
hora, não, disse ele enquanto levantava a colher cheia de sopa para o alto e
desejava todo o caldo no prato. Por hora, não.
O pai de Arthur sabia que algo não
estava certo, mas também acreditava na confiança que seu filho tinha para com ele.
E, se ele disse que por enquanto não havia nada de errado, optou por respeitar
seu espaço e aguardar até que o procurasse.
Durante alguns dias, a rotina foi a
mesma. O pai de Arthur o aprontava para levá-lo ao Colégio e na hora do almoço
a cena se repetia com o caldo da sopa. Arthur não mostrava mais o mesmo entusiasmo
e ânimo de ir para o Colégio.
Neste momento, o pai do garoto já
tinha consciência que precisava conferir o que estava ocorrendo, porque seu
filho não se pronunciava. Estava decidido! No fim da semana, ele pediria
licença do trabalho e iria até o Colégio. Mas, antes disso, Arthur voltou
animado e muito sorridente.
- Que bom lhe
ver feliz meu filho. Conte para o pai o motivo desse entusiasmo todo!
O filho, mais que feliz, devorando a
sopa, respondeu:
- Fiz um
amigo hoje! Estava meio chateado, pois não queriam brincar comigo, mas
imaginei que era questão de tempo e, por isso, não queria incomodar o senhor
com uma simples reclamação.
- Que bom!
E como chegou à conclusão de que seria questão de tempo?
- Bom! Lembrei
de quando o senhor começou um emprego novo e disse que as coisas não iam bem
porque seus colegas de trabalho não o aceitavam e achavam que o senhor não era
bom o suficiente. Lembro que me dizia que com o tempo eles se
acostumariam com você e logo o aceitariam. Achei que era isso que estava
acontecendo comigo.
O pai, espantado em ser reflexo para
uma decisão do filho, fez mais uma pergunta:
- E seu novo
amigo. Como ele é?
- Ah! Ele
é o melhor! No jogo de futebol é o que mais corre e chuta para o gol. Pai...? Será que um dia vou conseguir chutar para
o gol igual a ele?, perguntou o
menininho parando de comer e apoiando a colher de sopa no prato.
O pai abriu um belo sorriso e disse:
- Claro
que vai meu filho, e se não conseguir chutar como ele, você pode chutar do seu
jeito mesmo, não é não? Bom, hora de escovar os dentes e depois fazer a
lição de casa. Vamos!, disse ele dando dois tapinhas nas costas de seu
pequenino. E como é o nome do seu amigo novo?, perguntou o pai enquanto
ajudava o filho no banho.
- Pai, o nome dele é Leite!
- Leite???, perguntou ele, enquanto espremia
a esponja sobre as costas de Arthur.
- É pai!
Chamam de Leite por causa da sua cor.
O pai sorriu e concordou:
- "ESTÁ CERTO, SR. LEITE! QUERO QUE O
CONVIDE PARA O PRÓXIMO ALMOÇO, FILHO".
- Está
bem!, respondeu Arthur.
No almoço seguinte, Arthur veio
sozinho, mas logo adiantou ao pai que seu amigo não pode vir naquele dia porque
não teve tempo de avisar seus pais, mas na próxima semana viria com certeza.
- Que bom
filho, e como foi o dia de aula? Fez mais amigos?
- As aulas
até que foram boas, pai! Leite fez três gols hoje e não fica cansado como eu.
Cheguei a comentar com o professor de educação física e ele até disse que devia
ser por causa do nariz dele que é anatômico para respiração. Pai...! Não respiro
bem por causa do meu nariz? Eu podia ter um nariz como o do Leite, né? Assim
não me faltaria tanto ar de noite.
O pai sorriu e disse:
- Não, meu
filho! Você tem falta de ar porque quando nasceu entrou água em seus pulmões e
por isso eles não desenvolveram direito, mas como você é muito valente, lutou e
luta bravamente para puxar o ar para seus pulmões todos os dias. Não tem nada
de errado com o seu nariz! Bom, talvez ele seja meio tortinho como o do pai
aqui, falou apertando o próprio nariz para baixo. O filho sorriu.
No dia seguinte, o pai insistiu na
pergunta sobre os novos amigos do Colégio. Arthur, sem muitas palavra, encheu
os pulmões e disse que não tinha feito mais nenhum. Afirmou, ainda, que Leite
era o único que conversava com ele, mas talvez fosse porque também não tinha
outros amigos. Arthur parou e ficou pensando em silêncio.
O pai questionou o porquê de Leite
também não ter amigos se era tão bom jogador. Afinal, segundo Arthur, ele era o
primeiro do time a ser escolhido. O garoto respondeu que devia ser por causa
das qualidades que só Leite tinha.
-
Qualidades que só ele tem? Que qualidade são essas filho?
- Ah,
papai. Leite é o melhor para correr, Leite tem força nos seus músculos, ele não
reclama do sol ardido, não demostra dor, Leite não reclama quando cai nem faz
onda, logo fica em pé e parte pra outra. Diz que seu pai o ensinou a levantar o
mais rápido possível, pois senão a vida passa por cima e, se reclamar muito,
pouca chance terá. Leite também é atencioso, obediente aos professores, muito
diferente dos outros colegas que respondem. Ele é legal comigo pai. O único do
Colégio.
O pai sentiu um nó na garganta, mas
teve a consciência de que aquilo não poderia ser demonstrado e empurrou a sopa,
que mais parecia um pão seco, goela abaixo. Exclamou, em seguida:
- E cadê
esse Leite que não veio almoçar conosco!? Ele não gosta de sopa? Pois, amanhã,
teremos macarrão com carne, meu filho! Vamos antecipar o almoço de domingo!!!
O pai levantou-se rapidamente e ergueu
o filho no colo. Deu um giro com o pequeno garoto e assim impediu que ele
notasse as lágrimas que escorriam de seus olhos.
Na manhã seguinte, o pai foi acordar
o filho para ir à escola e tomou um susto ao vê-lo.
- O que é
isso meu filho?, perguntou ele ao ver o filho todo pintado de carvão na frente
do espelho do banheiro.
- Hoje
quero ficar igual ao Leite. Quero ser bom igual a ele.
- Ah...! O
Leite é assim? E você quer ficar igual ao Leite. O Leite que seu professor
disse ter nariz anatômico e que também não tem muitos amigos, questionou o pai
enquanto se encostava no batente da porta e admirava o filho pintando seu rosto
de carvão.
- E por
que esta lavando só as palmas das mãos? , indagou o pai ao ver o filho esforçando-se
para alcançar a torneira da pia.
- É que
quando Leite empurra minha cadeira de rodas o professor de educação física diz
"não gire muito as palmas das mãos Leite, já saiu tinta o suficiente dela".
- Muito
bem! Termine de se arrumar que eu mesmo vou ficar na escola com você e garantir
que vocês venham almoçar conosco hoje, disse o pai voltando para a sala.
Quando estavam chegando à escola
todos paravam chocados, mas diante da figura do pai nada diziam. É claro que
burburinhos saiam à medida em que eles se distanciavam.
Sr. Hernesti, pai de Arthur, o levou
até a sala de aula. E a turma ficou de olhos arregalados, mas, ao mesmo tempo,
com medo da figura robusta do pai. Sr. Hernesti ainda trazia os traços de
jogador de basquete. Poucos sabem, mas ele tinha um futuro promissor na liga de
basquete, porém, com a doença de Arthur e a morte de sua esposa no parto, ele
teve que abdicar de seus jovens sonhos para viver um novo.
Hernesti olhou para a sala e não
avistou nenhum negro na classe. Então, virou os olhos para a professora e disse:
- Bom dia.
Vim trazer meu filho Arthur que hoje está homenageando o seu amigo por sua
dedicação, força, honestidade e hombridade. Acredito que esta última palavra a professora....
qual seu nome, professora?
- Nathali.
Pode me chamar de Nati, respondeu ela em meio a gaguejos.
- Bom,
essa última palavra a professora Nati vai explicar melhor a vocês. Com licença
que agora o tio vai conversar com o diretor.
Enquanto seu pai saía, Arthur esboçava
um largo sorriso de satisfação pela presença do pai.
Quando o Sr. Hernesti avistou a sala
dos diretores, apertou o passo para chegar logo. Quando estava bem próximo, viu
a porta se abrir e saiu um menino cabisbaixo. Menino este coberto de tinta branca.
- Acho
melhor você ir para sua sala que tem gente lhe esperando. Sussurrou ele dando
um ânimo ao garoto que saiu correndo pelos corredores.
Antes que a porta da diretoria se fechasse,
Hernesti a interrompeu e entrou.
- Quem é o
Diretor?, perguntou.
- Senhor, nos
desculpe, mas isso não irá se repetir. Já avisamos o pai do menino e..., tentou
falar a mulher que logo foi interrompida por Hernesti.
- E
o que ? Vai puni-lo por tentar ser branco? Já não está sendo punido de forma
suficiente pelo professor de educação física que diz para não esfregar as mãos quando
empurra a cadeira de rodas do meu filho? Isso para não sair a
"tinta"!!! Vai puni-lo por não ter colegas nessa escola que o veem
como diferente da mesma forma que veem o meu filho? A senhora sabia que os dois
não têm amigos nesse Colégio? Minha senhora, o preconceito não nasce com as
crianças, nós que o incutimos nelas. Não posso jogar toda a
responsabilidade para o Colégio, pois grande parte do ensino vem de casa, mas
se os próprios educadores discriminam e se a própria direção pune quem está
sendo a vítima...Vocês só estão incentivando a discriminar ainda mais.
A Diretora, naquele momento, ficou
sem palavras e o mesmo ocorreu com o casal que estava atrás de Hernesti.
Por horas, os pais dos jovens ficaram
conversando com a diretora que no fundo tinha um bom coração, só não tinha
experiência de vida o suficiente para enxergar o que se passava no lugar e, com
o propósito de arrumar isso, elaborou uma turma de conselheiros das quais dona
Flora, Sr. Paulo e Sr. Hernesti fizeram parte.
O professor foi demitido e condenado
por discriminação, Arthur e Artur viraram grandes amigos. Sim!!!! Leite também
se chamava Artur, mas sem H. Sua mãe tinha um certo preconceito com nomes
americanizados, mas hoje está trabalhando nisso. Pensa em chamar sua filha recém-nascida
de Nathi. Em homenagem à professora, mas o pai ainda insiste em Maria.
Enfim, saiu o esperado almoço. Sr. Hernesti
convidou a família toda de Artur para almoçar e quando questionou Artur de como
estavam as coisas no Colégio ele respondeu:
- Está
muito bem. Agora, eu e Arthur temos muitos amigos e somos conhecidos como a
dupla “café com leite”. É muito legal. Todos querem ficar com a gente. É muito
legal!
- Ah eh?
Que bacana. Que bom que agora vocês estão bem. E o macarrão como está ?
- Está
muito melhor!!!, respondeu ele enchendo a boca com mais uma garfada.
A mãe de Artur, preocupada, indagou
mais um pouco o filho que agora estava de boca cheia.
- Café com
leite? Como assim?
Antes que o filho engolisse todo o
macarrão para responder à mãe, Arthur se antecipou e disse.
- Ora tia,
ficamos uma semana indo pintados de carvão e de tinta branca. Alguma coisa
tinha que ficar pra história. Rosana colou chicletes no cabelo uma vez só e até
hoje é lembrada.
Todos riram e a Sra. Flora fez uma
última pergunta:
- Alguém
ainda mexe com vocês de forma desagradável?
Um silêncio ficou no ar até que Artur
engoliu todo o macarrão e, concordando com a cabeça, disse:
- Sim, mas
é como o Sr. Hernesti disse uma vez no café da manhã. "É impossível esse
aroma do café com essa pitada de leite não atrair todo mundo. Shooo mosca !!!!”
Sr. Hernesti riu de mais uma façanha
sua, e todos riram com ele...
- Vovô, o senhor já terminou de tomar
o seu café?, perguntou uma linda jovem
enquanto segurava na cadeira de rodas do senhor que olhava admiravelmente para
a fachada da maior cafeteria da Esquina. A CAFETERIA CAFÉ COM LEITE DOS
ARTHURES.
- Já sim, minha neta. O vovô só
estava espantando as moscas. Dizia ele enquanto dava dois tapinhas em uma de
suas mãos. Mãos estas coberta de tinta preta.
*Ricardo Cândido participou do Curso de Escrita Criativa, turma 2019.
Comentários
Postar um comentário