De onde vêm os amigos? (Frederico Fraga)


 Imagem capturada no Google Imagens
 
De onde vêm os amigos?
(Frederico Fraga*)

Calor das 11 horas, início de verão em dezembro, trânsito embolado, barulhento e lento.
A rotatória com sinaleiro, criada pela nova equipe de gestão de trânsito da prefeitura, simplesmente não funciona.
Uma fila dupla de carros tenta avançar adiante para se aproximar do novo sinaleiro, que insiste em mudar de cor, mas não permite um fluxo adequado.
Numa BMW X5, a executiva começa a se preocupar com a pontualidade da reunião para a qual se dirige. Essa reunião pode concretizar seu projeto de vida, depois de anos de planejamento, finalmente classificá-la como bem-sucedida. Apesar do carro importado, ninguém sabe dos boletos que chegam diariamente no seu escritório.
Logo atrás da executiva, insinua-se uma motocicleta pequena, popular, dessas que se ajeitam em qualquer espaço, porém sem conseguir avançar à frente do carro importado. O motociclista jovem cabeludo, despojado, vestido com camiseta básica branca, calça jeans e capacete. Um pouco impaciente, pois parecia atrasado também.
`A frente, está um carrinho antigo, mas bem cuidado, desses que já saíram de linha. Pequeno, mas provavelmente econômico. Na direção, uma aposentada bem concentrada no trânsito, um par de óculos grudado aos olhos e outro par no pescoço. Indagava o porquê do trânsito lento.
Eis que surge, na rotatória, uma viatura da polícia.
- Trânsito parado. Ninguém avança,  diz o policial.
O motociclista faz uma tentativa de seguir adiante, mas a executiva grita:
- Cuidado mocinho, se arranhar meu carro, você vai ter que pagar .
- Se a senhora der um espacinho, eu consigo passar, argumenta mexendo no capacete.
- Nem pensar, responde a executiva procurando um espelho para se arrumar. Tenho uma reunião importantíssima não posso perdê-la. Aqui você não passa.
A velhinha, mais à frente, ainda não entende o que acontece. Chateada, pois vai perder a sessão de fisioterapia, e preocupada com o que irá preparar para o jantar com seu filho recém-chegado de viagem.
- Ô motoqueiro, desça da moto e veja o que acontece lá na frente, ordena a executiva.
- Ô madame, sou motociclista e não seu mordomo. Vá você.
- Deixe de ser frouxo motoqueiro, está com medo da policia ou não tem documento da moto?
- E a madame não pode sair do carro e sujar o sapatinho, precisa de algum secretário? A senhora é meio abusada, hein?
A executiva então desce do carro e vai discutir com o policial que avisa: - Volte para o seu carro. Vai demorar.
Uma lágrima insinua-se em seus olhos.
-Lá se vai minha reunião. Vou perder meu projeto de anos, pensou alto.
No retorno para o carro, encontrou o motociclista sem capacete, sentado no meio fio.
-Vou perder minha aula de matemática. Vou reprovar de novo, disse com voz triste.
- Matemática?! Minha paixão. Dei aulas de matemática durante 25 anos, disse a aposentada abaixando o vidro do carro.
A executiva sente-se em um pesadelo. Já havia superado tantas dificuldades e obstáculos neste seu maior projeto. Como pode permitir que esta situação, um mar de carros, o trânsito parado, possa lhe impedir de atingir a glória que tanto desejou? Tenho que achar uma solução, diz em tom baixo, enquanto olha o celular. Não adianta ligar para ninguém. Sempre resolvi meus problemas sozinha.
Fecha os olhos como se meditasse. Ajeita o vestido novo. Corrige a postura, agora ereta. Firma as pernas sobre o par de sapatos mais caro que já comprou.
A executiva agora sorri. Caminha segura na direção do motociclista e da aposentada .
Pega firme na mão do motociclista e da aposentada como se fossem rezar.
-Vocês vão me salvar,  diz olhando para os dois.
E continua: Jovem, desculpe se fui ofensiva, infelizmente, `as vezes, passo uma imagem de arrogante, mas isto não é a realidade. Preciso muito da sua ajuda. Necessito que você me leve de moto para minha reunião. Estaciono o carro e você consegue passar.
- Tenho minha aula, madame, diz o jovem com olhar de reprovação.
- Não se preocupe. Resolvo isso para você. Vou contratar essa senhora para lhe dar as aulas que precisar.
A professora aposentada aprovou a ideia com um leve sorriso, mas em seguida desanimou .
- Não posso dar aula hoje. Tenho que preparar um jantar para meu filho que chega de viagem.
- Não precisa preparar nada. Se eu chegar à reunião, jantamos todos para comemorar meu projeto. Seu filho vai junto.
Dito e feito. Reunião bem-sucedida, aula realizada.
Mais tarde, no restaurante, o engenheiro filho da aposentada estava curioso com a mãe idosa. Há tempos não a via tão arrumada. O que teria acontecido? Sentia que ela estava ansiosa aguardando a chegada de sua nova turma.
Então, a aposentada disse com olhos iluminados, finalmente, ao filho:  Que bom, lá vem eles.
De sua confortável cadeira, o engenheiro observa chegar um jovem tipo maloqueiro, barba rala, cheio de tatuagens e um capacete no braço, acompanhado  de uma moça com jeito de periguete, minissaia colorida, batom vermelho, salto ponta agulha e rindo alto. Eles acenam para a aposentada.
Ele arregala os olhos, vira-se rapidamente para a mãe aposentada e pergunta aflito :
-De onde são esses seus amigos mesmo?

* Frederico Fraga participou do Curso de Escrita Criativa, segunda turma de 2018.

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