Acidente de Carro (Ricardo de Jesus Silveira)
Imagem capturada no Google Imagens - depositophotos
ACIDENTE DE CARRO
Ricardo de Jesus Silveira
Os rastros
dos pneus dos dois veículos no asfalto indicam que ambos brecaram e que não
estavam devagar. De fato, a batida foi estrondosa. Na
caminhonete de cor preta, ___ dessas que raramente transportam alguma coisa
além do próprio motorista, em regra muito jovem e, às vezes não tão jovem, como
neste caso, ___ um homem de meia idade está mexendo a cabeça e gemendo,
parecendo exprimido pelo volante, com o rosto ensanguentado e um corte na
testa. No outro veículo, ___ um sedã verde-escuro, metálico, de marca
respeitável e nada barato, típico dos executivos jovens que dispensam o
motorista, por sinal tenho um igual, e, há um tempo não muito longe, somente
algumas “famílias da alta sociedade”, como dizia meu pai ao se referir aos
ricos, tinham em casa para passear nos fins de semana, ___ lá está um rapaz
imóvel, de não mais que 30 anos, debruçado sobre o volante, como se estivesse
dormindo.
Em
poucos minutos, a esquina fica cheia de gente vinda de todos os lugares e
direções. A maioria, certamente, saída de dentro das casas próximas, pessoas
que deixam momentaneamente os seus afazeres domésticos e apareciam com seus
rostos assustados e curiosos. Também dos escritórios e bares próximos chegam
mais pessoas que paralisam os seus trabalhos, todas, obviamente, ávidas em
saber sobre o acidente. Muitos outros aparecerão para ver o espetáculo e também
irão como vieram, sem que se saiba de onde e para onde. “É o segundo nesta
esquina em duas semanas”, observou o atendente da padaria em frente, o primeiro
a se instalar ao lado dos veículos acidentados. E, como parece corriqueiro
quando ocorrem colisões, as duas perguntas mais comuns que os que chegavam
faziam eram: “Quem foi o culpado? ” , “Morreu alguém?”
Nada de anormal, os acidentes
mais estrondosos são os mais espetaculares como acontecimentos para serem
contados aos amigos, aos parentes e a todos que se disponham a ouvir quem de
fato viu ou diz ter visto algum. E, com toda certeza, a disposição de muitos
para saber com detalhes o que aconteceu torna-se mais premente quanto mais
trágico e espetacular for o ocorrido. De modo que se ouvir sobre um mesmo
acidente histórias diferentes, contada por mais de uma pessoa, não estranhe,
raramente coincidirão, e, então, terás tantas quantas estiver disposto a ouvir,
umas com mais detalhes, outras com menos e mais suposições, estas, muitas vezes
duvidosas, mas ótimas para ganhar a atenção de quem ouve, o qual escolherá a
que lhe parecer mais crível, ou interessante, ou conveniente, e, então, dará a
ela sua própria versão.
Os acidentes são mais
espetaculares quando deixam vítimas, pois não há como ficar indiferente ao ver
sangue no asfalto e pessoas gemendo. São cenas que ficam na memória como
fotografia e nos acompanham por muito tempo, e, ainda que não sejam exclusivos
das grandes cidades, obviamente por terem sistemas viários complexos, com
avenidas largas, de quatro ou mais pistas cheias de veículos andando em alta
velocidade, a probabilidade de acidentes com vítimas fatais é maior.
De fato, os dados existentes
são assustadores. Na capital do estado, por exemplo,
883 pessoas morreram no ano passado em acidentes de trânsito. E não se conta
aqui as que ficaram paralíticas ou tiveram algum tipo de sequela. Pois, se
contadas, certamente, esse número seria quadruplicado.
Chegou mais gente, difícil
andar por aqui. Um grupo de pessoas está em volta do atendente da padaria que
parece descrever o que aconteceu: “o farol acendia verde e vermelho de forma
rápida e alternada, como se estivesse piscando” diz ele, e completa definitivo:
“Isso confundiu os motoristas!”. Muitas perguntas são feitas ao rapaz que segue
relatando o que viu e que, de fato, pela coerência da narrativa, não há margem
para pôr dúvida no seu relato. Outro jovem não perde tempo, aparenta ser um
office-boy, carrega uma pasta e tem o boné com a aba virada para a nuca, puxa
do bolso de trás da calça um celular e começa a fotografar os dois carros
amassados, ainda soltando fumaça, com os acidentados dentro. Vai saindo, mas
volta rápido, ia esquecendo de fazer uma self, se afasta até a calçada e
termina sua operação, certamente, enviando a imagem para a namorada e redes
sociais, enquanto o som da ambulância chama a atenção de todos.
As pessoas não se afastam, ao
contrário, aglomeram-se quase a impedir a passagem dos policiais, médicos e
enfermeiros que precisam se impor com energia para chegarem aos dois veículos.
Dividem-se entre os dois carros, olham, trocam informações que ninguém ouve e
passam a dar atenção ao senhor sangrando, que havia desmaiado e volta a gemer.
Tiram-no da caminhonete com dificuldade e o colocam na maca, levam-no para a
ambulância, o sujeito perde o sentido mais uma vez. A ambulância tem muitos
recursos com equipamentos médicos, parece que não há mais risco de vida. Depois
dirigem-se para o sedã onde o rapaz debruçado sobre o volante continua imóvel.
O rosto dos policiais é impassível, não há emoção, aparente, certamente já
estão anestesiados com tantos acidentes, devem ter perdido a conta. Não é
insensibilidade, é saturação, é reação automática de autopreservação.
Já dentro do veículo, um
policial levanta a cabeça do jovem ao volante, não há ferimento aparente.
Espera, mas... que incrível... o rapaz parece comigo... “Hei”!!! “Hei”!!! Grito
mais alto ao policial que começa a tirar o rapaz do veículo... Ele não me ouve...
“Hei”!!! Hei!!! Puxo conversa com a senhora ao meu lado direito que faz o sinal
da cruz e leva a mão à boca, como se fosse esconder um bocejo: “A senhora não
acha esse rapaz no carro parecido comigo?”. Ela nem me olha, então repito a
pergunta ao rapaz do meu lado esquerdo, ele não me ouve e continua conversando
com a garota a seu lado... E, então, ouve-se um estrondo forte de batida de
veículos. E aquela quase multidão curiosa sai em desabalada corrida em direção
à próxima esquina.
Só
sei até aqui.
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