A Morte da Cadela (Antonio Carvalho Junior)

(Foto: Antonio Carvalho Junior)



A MORTE DA CADELA

Antonio Carvalho Junior*

             
           Encontraram-na morta, sozinha, pela manhã, sobre o tapete do lado de fora da sala. Já estava bem velha e cega, disseram.

            Era meio vira-lata, pequeno porte com pelos curtos e olhos esbugalhados. Numa das minhas visitas, a conheci. Ela e mais um outro, maior, todo branco. Um dia, num ataque de loucura qualquer, ele começou a pular pelas paredes e, então, resolveram abrir o portão. Ele saiu correndo e nunca mais voltou, me contaram.

Naquela casa e em todas as outras, existiram bichos. Geralmente alguém os trazia ou eles apareciam e iam ficando, juntando-se àquelas pessoas.

            Lembrei-me de minha infância. Cresci em contato com animais. Fui um garoto como muitos outros de cidade pequena do interior. Muitas mulheres na família, mãe, tias e avós.

Tive duas, é claro, e esta foi a mais próxima. Matrona, corpulenta, peitos fartos. Sempre a cuidar dos afazeres domésticos. Cozinha ampla com mesa pesada de madeira e fogão a lenha. Quintal cheio de galinhas soltas e uma horta sempre bem cuidada. Plantação de milho, mandioca, batata doce, abacaxi. Tinha vacas, e à ida ao curral, bem de manhã, pra ver a avó ordenhá-las, levava uma caneca com um pouco de café, onde ela esguichava o leite pra eu depois tomar e fazer bigode. Nessa época, existiu um cachorro todo preto, companheiro de aventuras pelos barrancos, caçando calango. Disseram que morreu com o focinho cheio de espinhos, pois atacara um porco espinho.

            São dessa época também as lembranças das manhãs frias de inverno, particularmente uma delas quando a avó chama pra mostrar uma coisa: enfia a mão no bolso do avental e, quando a retira e abre, aparece um pequenino beija-flor que sai rapidamente a voar. Ela o tinha encontrado no chão, em estado de letargia devido ao frio da noite e, depois de aquecido, foi embora. Esta foi minha conclusão, anos depois.

            Outra recordação dessa época é o silêncio das tardes quando se escutava somente os pássaros a cantar, sendo obrigado a ir dormir um pouco, pois todos os adultos da casa também iam. Em algumas tardes ensolaradas, pelas janelas abertas entrava o vento e também algumas mutucas que ficavam a dar cabeçadas no vidro, tentando sair. A avó pegava o bicho delicadamente e, usando linha de costura, amarrava-o e entregava a outra ponta da linha ao menino curioso que ficava a observar o animal voando em círculos até cansar. Era divertido.

            Sensação boa eram os cheiros. Cheiro de curral, de mangas apodrecendo no chão, do milho soltando os pendões amarelos, da água da represa e muito mais. Ainda hoje, este sentido está presente e marcante no contato com as pessoas e lugares. Assim passava vários dias com a avó, correndo solto pelas estradas de areia quente, pisando em abelha e chorando muito com o pé inchado pela ferroada.

Trago, desse período, os silêncios, cheiros e paisagens. Poucos amigos, alguns primos. Muito aplicado na escola. Leitor voraz.

            As pessoas mudam de casa e de cidade e eu também tinha que ir junto. Naquela época, não tinha opção. A avó também foi algum tempo depois pra cidade grande. Ainda me lembro duma estatueta de cachorro, em louça, que ela tinha sobre um dos móveis da casa.

 Aos domingos tinha que ir com um monte de gente a uma chácara e isso era estressante. Era muita gente junta, muito barulho, não me sentia bem, ficava irritado. Gostava mesmo era de sair sozinho pelas estradas de terra, a caminhar, ouvindo o canto dos pássaros e o silêncio das tardes de sol. Num daqueles domingos, teve festa, música e fui dançar com a avó. Foi tão simples e fácil como se aquilo fosse a coisa mais banal da vida. Isto também me acompanhou. Não sou lá um pé de valsa, porém o dois pra lá, dois pra cá que provavelmente aprendi com minha avó ainda guardo na lembrança.

De volta à pequena cidade do interior, os anos de adolescência passados na cidade grande foram significativos para um garoto um tanto tímido e de poucos amigos. Entrara em contato com outras pessoas e outras formas de relações pessoais. Desde moleque sempre olhara pra relação dos pais e da família em geral e pensava: será que vou ter que fazer isso também? Na primeira oportunidade, foi embora, saindo de casa para estudar e trabalhar.

Ainda hoje, quando me recordo desse evento, fico tentando encontrar explicações pra tal mudança tão radical. Foi como dormir num lugar e acordar em outro. Outras pessoas, novas paisagens e diferentes relações. Cheguei à conclusão que não era tão tímido assim e que conseguia me relacionar com os outros de uma forma distinta daquela que havia presenciado até então, e com um emprego mais estável, fui morar sozinho. Nada de chegar em casa, encontrar aquele monte de gente a falar alto e ter que assistir sempre aos mesmos estúpidos programas de televisão

            Bom, na realidade, o garoto cresceu e descobriu que morar só é impossível e hoje eu o trago comigo. Dele são as lembranças da infância que agora moram em mim. Descobri que não vivo só e sim comigo mesmo e com todos os eus que me habitam. Esta foi uma descoberta e tanto, pois ainda sinto um prazer inenarrável ao chegar em casa, eu, o garoto e todos os outros, abrir a porta e certificar-me de que ninguém me espera. Nem mesmo um animal ... por enquanto!

            Depois de alguns meses, a avó também voltou pra cidade pequena do interior e foi morar numa casa vizinha. Casa construída nos fundos do terreno com um quintal enorme à frente e imenso matagal. Com o passar dos anos e as visitas constantes, o garoto pode constatar as mudanças radicais no quintal da avó: o mato desaparecera e no lugar foi cultivada uma horta. Tinha de tudo. Taioba, mamão, alface, couve e até dois pés de café que já estavam lá e foram poupados pela roçadeira que passaram no matagal. Em alguns finais de semana, quando em visita, encontrava a avó sentada à varanda, a espalhar o café sob o sol quente para secá-lo.

            Tempos depois, a avó ficara viúva e continuava a morar sozinha. Na casa dela, o garoto ainda encontrava a estatueta em louça do cachorro e alguns outros objetos que trazia na memória dos tempos de infância. Outras mudanças ocorreram, novas casas foram habitadas, estas sem quintais para horta. Sobraram alguns vasos de flores e mobília, no entanto, a estatueta o garoto nunca mais encontrou.

            O garoto ficou adulto e a avó envelheceu, como tinha que ser. Nas visitas intermitentes à casa dos pais, encontrava a avó que chegava na hora do almoço e voltava pra casa dela logo depois de comer. Morava a uns dois quarteirões de distância e vinha caminhando, apoiada na bengala. Um dia, novamente em visita, disseram que a avó estava morando com eles.

            Nas poucas conversas triviais que tivera com a avó, durante as visitas, ela recordava fatos, reclamava das dores da velhice e das saudades dos entes queridos e já falecidos. Falava que era bom ter filhos para que eles cuidassem da gente quando a velhice chegar.

Eu ouvia .... e sorria ...

A casa estava sempre cheia de gente. Filhos, sobrinhos e amigos ... deles, daqueles que ali moravam. Na hora do almoço, todos se reuniam, comiam e conversavam.

A velha cachorra vira-lata circulava por ali, livremente, por todos os lugares da casa. Vivia cheia de carrapatos. Cuidavam dela do jeito deles. A avó também andava pela casa, a princípio de bengala e depois com andador. Estava velha e passava a maior parte do tempo deitada no quarto dela, a conversar com as paredes e rezar.

            Certa vez, em visita, fiquei sabendo que a cadela já tinha sobrevivido a duas passadas de veneno no quintal por conta das pulgas e carrapatos, e como não a prenderam, ela entrou em contato com o produto, ficando bem debilitada ...e não morreu. Era mesmo uma sobrevivente.

Enfim, um dia, numa das últimas conversas com minha avó, ela sentada no sofá, na sala, em frente à televisão ligada, já meio cega pela catarata, entre relatos de recordações das festas juninas em frente à pequena igreja do lugar, colheitas de algodão pra ajudar nas despesas da casa e sobre o fato de ter índios na família, disse-me, com um olhar a vagar pelo ambiente: --- Eu vim  morar aqui pois já estou velha e tenho medo de morrer sozinha, `a noite, na  minha casa ...

Sorri ... resmunguei algo ...

Eles também cuidaram dela ... do jeito deles ...e ela sobreviveu ...



 * Participou do Curso de Escrita Criativa (Turma 1/2018) da Prosa - Cursos e Consultoria

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