Um conto para o Ano Novo



 (imagem do Google Images) 
 
ORLANDO E O NASCER DO SOL
 (Ricardo de Jesus Silveira*)

         Os mais velhos falavam de doenças: era o braço esquerdo da tia que voltou a doer, a insônia da outra tia que não ia embora, a pressão arterial do tio que andava muito alta, e até da morte do cão, Nero, um vira-lata legítimo que morreu de velhice naquele ano, lembravam com tristeza. Sobre o governo, bom ou ruim, sempre motivo de discussões acaloradas, nenhuma conversa.
         Não estava entendendo aquele Ano Novo, muito diferente de dois anos antes que teve até sanfoneiro, com a tia e o tio, dois “pés de valsa”, românticos e apaixonados, dançando tango de modo sério, compenetrados, como parece exigir a dança. Não era próprio deles aquele desânimo todo.
Os primos Luiz e Lucinda, filhos da casa, mais a amiga Zelinha conversavam num canto da sala e me chamaram. ___ Primo, disse Lucinda, isso aqui tá difícil, vamos dar o fora, já cantamos para tentar animar, e até carne de porco, que não gosto, comi para agradar a mãe que disse que dá sorte. Essa turma está ruim de festa, daqui a pouco tá todo mundo dormindo sentado. ___ Vamos nessa, concordei de pronto. ___ Só vou dar um alô à minha mãe para ela não ficar preocupada, disse Lucinda. Saímos sem precisar de desculpas.
Eram mais de duas horas quando iniciamos um giro pelos bares da cidade. Encontrei velhos conhecidos de férias anteriores, uns mais festivos, outros menos, mas todos sem boas novas. Até na rua estava difícil. Então, pensamos voltar para casa, depois do que seria o último bar que ajudamos a fechar naquele dia.
Mas, só pensamos. Durante a saideira para fechar a conta, a prima teve a ideia de irmos à praia para ver o sol nascer. Não imaginava nada melhor, ninguém tinha sono e certamente o bar do Zeca, na ponta da praia, sugerido pelo primo, sempre o último da cidade a fechar, e que eu pensava não existir mais, poderia nos abrigar para a definitiva saideira.
Soprava um vento frio e sem agasalho. Andamos abraçados um bom tempo, rindo menos do que era costume e lembrando de férias anteriores. Chegamos ao Zeca, estava do mesmo jeito, “sujinho” como quando lá estive, fazia dois anos, e o Zeca com a mesma cara amarrada de poucos amigos, mas, era só puxar conversa que destravava a língua e só parava quando um outro freguês pedia alguma coisa. Não sei como conseguimos beber mais, mas, enfim, a idade tornava possível o que mais tarde entenderíamos como insensatez.
Não há melhor lugar para ver o nascer do sol do que a praia e essa foi a desculpa para a definitiva saideira. Não sei como conseguíamos beber tanto e, definitivamente, ali, não tinha a menor importância. Nesse meio tempo, surgiu, vindo da praia, um bando de meninos e meninas maltrapilhos, grandes e pequenos, e, antes que tomassem conta do lugar, o Zeca foi logo esparramando com todos sem não antes chamar a menina maior, que parecia ser a líder deles, e dar a ela duas bengalas e umas linguiças que sobraram na estufa do balcão para que dividisse com a meninada. Dividiram sem briga, mas ávidos e esfomeados, e foram saindo.
Ficou apenas um menino mirrado, que disse ter seis anos, mas pela aparência ninguém lhe daria mais que quatro. E não é que o garotinho foi se esfregando e acabou se enfiando entre mim e Zelinha, que logo tirou da bolsa um lenço para limpar o seu nariz catarrento. Ele aceitou, apenas olhou para ela como se a conhecesse há muito tempo. Não ficamos enchendo o molequinho de perguntas e continuamos a conversar, mas percebemos que ele logo dormiu com a cabeça sobre o braço da amiga. Era um sono pesado, fundo, mas que não durou mais que cinco minutos, pois, assim que uma menina da mesma turma gritou lá do meio da rua ___ Orlando! A mãe tá esperando! Ele acordou e saiu em disparada.
Zelinha estava feliz, mostrou o braço molhado e disse: ___ Ele tem a respiração ofegante e a lágrima quente!
Olhamos para o mar e o Sol já aparecia imenso e vermelho no horizonte, como se nascesse ali. 

* Participante do Curso de Escrita Criativa em 2017

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