Três autores de Prosa



 (Imagem capturada no Google Images)
 
A Prosa publica textos de três autores que participaram do Curso de Escrita Criativa 2017:


Caixinha de surpresa
(Efraim Rodrigues)

Em mais uma agradável manhã de domingo, tomava eu um café expresso com leite, acompanhado de torradas com a quantidade correta de manteiga, lendo o jornal que, afinal, chega para mim todo dia na hora e forma corretas porque agora é digital.
Estava tomado por uma rara sensação, quando se tem um filho de seis anos, de que tudo está em seu lugar, não há consertos a fazer, ao menos dos grandes, e ninguém quer nada de você.
Mas isto não duraria muito.
No momento seguinte, nos chega um áudio no whatsapp com a bomba, o furacão, a explosão.
Era uma voz infantil, alegre até. Deu seu recado em menos de dez segundos.
- Pedro ! Eu e meu pai vamos ao jogo do Londrina, você não quer ir com a gente?
Já sabia de antemão que não poderia fugir, e qualquer tentativa seria recebida pela esposa com o olhar de “Você não é um bom pai”. Dor de cabeça, lumbago, nó nas tripas...? Não colaria.
Átimos após os fatídicos dez segundos, o menor já dava pinotes pela casa, e eu tinha a certeza que meu domingo havia acabado ali, às oito da manhã. A primeira sílaba de futebol não é uma coincidência.
Impossibilitado de terminar o jornal de domingo, ou de fazer qualquer outra coisa que não fosse igualar-me a todos outros pais do mundo, me vesti rápido e nos pusemos a caminho do estádio. Para que lado fica esta coisa?
Não fui picado pelo mosquito do futebol. Não entendo a razão de ver 22 marmanjos chutando uma bola. Vinte e dois desconhecidos. A bola entra ou não entra, alguém me explica que diferença isto faz na minha vida? Ao menos não era um jogo de copa, quando minha alienação futebolística toma ares de afronta à pátria e picaretas e safados de todas as nuances me acusam por ter mais o que fazer do que ver nossos onze imigrantes de luxo voltarem da Europa para bravamente lutarem pelo país. Por uma semana.
Quem está lutando pelo país sou eu, neste sol e neste amasso de 20.000 pessoas. Mas nem tudo foi angústia sofrimento e miséria neste dia. Aos 10 minutos do primeiro tempo, perdi um gol.
“Nossa, que vista legal da cidade tem aqui” e aos 20 minutos meu filho, meu orgulho quis ir embora e foi seguido pela amiga. O outro pai, este sim picado pelo mosquito, aceitou sair no intervalo e eu até achei que me safaria daquilo em pouco tempo, mas não.
O  neófito aqui teve seu carro bloqueado por outro e, em pleno intervalo, me vi dando tchau para filho, amiga do filho e pai da amiga do filho, para aguardar o término daquela cirurgia de canal em cama de faquir lambuzado de mel no formigueiro.
E dá-lhe andar pelas ruas ao redor do estádio...
Minha intuição não poderia estar errada. O jogo teve prorrogação, pênalti, benção de pai do santo e um discurso do Fidel, e eu esperando.
Mas, talvez, tenha sido um investimento. Consegui criar o folclore familiar que o Pedro fica entediado em jogos de futebol. Se a lenda perdurar por uns dez anos, depois é por conta dele. Parece que estou safo de jogos de futebol nesta encarnação.


É só mais uma Miss, gente...
(Jorge Felizardo)

“Eu não acredito que eu li que hoje em dia tem cota até pra miss Brasil, eu realmente não estou crendo nisso!!!”, “Eu tô de cara! Miss RS tem inglês fluente, aí vem a Miss Piauí se vitimizar e ganha o concurso, ME POUPE!”; “A Majú fica no JN porque sofreu racismo. A miss vence porque é negra e tem "brasilidade" ou “Comerciais de tevê tem que ter negro porque senão é racismo.”
Eu, hein, acho que estamos vivendo um momento em que as pessoas estão cada vez mais loucas, tanto ódio no coração só porque uma negra nordestina foi escolhida como Miss Brasil, a Miss Piauí 2017, Monalysa Alcântara, de 18 anos. Charme, luxo e glamour, tudo isso vai pro lixo quando lemos comentários deste tipo após a escolha do #missbrasil2017.
Ai que mundo louco, é só mais uma Miss!!!
Essas mensagens na internet vão fazer os estrangeiros ficarem pensando que o Brasil é um país preconceituoso e racista. Quando a gente sabe muito bem que não é, tem um caso aqui e ali, mas no todo, o Brasil é um berço de todas as raças.
Gente, que situação, para quê, fazer tamanho escarcéu? A moça é uma negra lindíssima! “É negra?” “Sim”. E daí? Qual é o problema? Só dá pra notar que ela é negra de perto, caso contrário, a gente nem perceberia pois mais parece aquela santa italiana, amorenada, Nossa Senhora de Achiropita, da Calábria, não aquela outra, Nossa Senhora de Casaluce. Olha só os traços dela, sorriso de uma croata com os finos lábios de uma francesa e uma maçã do rosto de uma holandesa, deve até ser uma descendente longínqua de um dos batavos que permaneceram um tempo no norte do país… e que pele e que nariz… Bem, o nariz, este não engana, nem o cabelo, mas até que são lindos, fala sério.
Mas o mais importante, e eu preciso falar, é que eu sou completamente contra esse negócio de preconceito, esse negócio de discriminação. Tudo isso é uma grande bobagem. Bobagem e sem cabimento.
Inclusive, eu estava falando com a Marrom, esses dias. É, a Marrom, a menina que trabalha aqui em casa. Olha, é essa menina, gente, é como se fosse uma filha pra mim, pois a trouxemos de uma viagem que fizemos, eu e a minha esposa, lá para o interior de Minas, perto do Jequitinhonha. Como a família da Marrom era muito pobre, tadinhos daqueles ‘fumacinhas’! Sabe, nós a trouxemos para trabalhar aqui em casa. Você tem que ver como ela trabalha bem, faz de tudo e mais um pouco. Demos sorte, viu. Nós pagamos um quase nada. Bom, por causa da crise. Você já viu o quanto que tem custado manter uma boa secretária hoje em dia? Um absurdo, os olhos da cara.
Então, eu falei assim para a Marrom: “Olha Marrom, eu gosto muito de você e não tenho nada contra a sua cor, mas eu acho que para o próximo ano para ficar mais equilibrado esse negócio de Miss Brasil, acho que está na hora de ganhar uma loirinha”. “Sabe, só para valorizar a diversidade e porque as loiras sofrem muito preconceito, você não vê que sempre as pessoas ficam chamando elas de loira burra?” Coitadas!
Tá na hora de valorizar a diversidade!


O Enforcado
(Nathan Stuchi)

Uma bola de cristal e aromas amadeirados, uma atmosfera densa se formava ao nosso redor. Na pequena tenda uma mística cigana atentamente nos encarava com um olhar distante e violento. Após alguns minutos nos fitando, como em um espasmo assustado, ela retorna de sua visão, muito agitada, dá um gole no copo d'água, posicionado paralelamente ao baralho aberto, localizado no centro da mesa.
Todos nós estávamos atentos à espera da resposta de minha pergunta à cigana: “Qual é o homem mais tolo do mundo?”. Com voz rouca, porém firme, a mística vidente desatou a falar, atropelando as palavras, perdendo até o ar.
Conseguimos fisgar pouco do que ela disse. Como uma profeta, respondeu minha questão de modo muito detalhado, como, se em seus minutos de abstração, tivesse tido contato muito próximo com esse ser no qual questionei a existência.
Com os olhos muito abertos, nos atravessou e disse:
“De sua boca apenas maus agouros serão anunciados, sua racionalidade só comtemplará apenas seus interesses mais sórdidos e solitários. Ele dividirá o joio do trigo de forma imparcial e duvidosa, como um Deus insano, um dia acreditará que é onipotente o suficiente para se quer decidir, ou melhor, separar por classe, gênero, a importância dos indivíduos. É claro, quando digo INDIVÍDUOS, me refiro a eles, excludentemente e exclusivamente, no gênero masculino, afinal, para este “DEUS” no alto de seu tortuoso olimpo decadente, mulheres apenas servirão para a subserviência dos homens, dos lares e/ou para a procriação, regra essa que não incluem mulheres negras, pobres e indígenas. Afinal, segundo o tolo estas não estão aptas nem para a procriação e muito menos para servirem seus lares como boas mulheres domesticadas, porém, terão alguma serventia em suas latrinas recheadas de “bons costumes”. Em último caso, poderão ser utilizadas como mão de obra barata em seus palácios verdes, mãos pequenas enchem melhor os fuzis com pólvora, e os narizes com algodão.”
A cigana estava fervendo as rubras bochechas, ao reproduzir a fala daquele que acredito ser do homem mais tolo do mundo. Eu e meus amigos, ao todo um grupo de cinco pessoas, estávamos encharcados pela chuva de miséria de todo aquele discurso. Saímos da tenda da cigana e, a cada passo de nossa tortuosa rota de volta, em cada um de nós reverberavam as palavras duras e raivosas de um ser, se assim posso dizer, que, se um dia vier a nascer, nada mais deixará florescer e se esse dia vier a acontecer, nossa força ele há de conhecer.

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