Quarto Assombrado (Fátima Carozzi)

 
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QUARTO ASSOMBRADO

 Fátima Carozzi*



                 

                    Saudade do'cê, Arlindo - dizia minha tia-avó.

             -  Eu também, uai! - respondia meu avô e iam para a varanda da casa grande tirar um dedo de prosa e,  de lá,  só saiam quando Zefa chamava para o almoço.

           Meu avô era um "sujeito" alegre, quando alegre, mas exigente e duro com  malfeitos e injustiças. Um coração enorme, que cabiam sempre: os dez filhos, os vinte e quatro netos, o pai, a mãe e os irmãos das noras, os empregados,  o gado de leite, os porcos, as cabras, os cachorros, os coelhos, o pomar, etc, etc.

         Ficou viúvo aos cinquenta anos, desde então, nunca mais o ouvimos falar de minha avó. Meus tios afirmam que, às vezes, o pegavam enxugando, às escondidas, uma lágrima que caia teimosa e que  ele, disfarçando, dizia ser um cisco.

       A casa tinha vários quartos, todos muito limpos e arejados. Uma sala de jantar, que não era usada, só arrumada. Almoçávamos e jantávamos numa varanda fora da casa com uma enorme mesa perto do fogão à lenha, onde Zefa fazia seus preciosos pratos à mineira.

        A espera para o jantar era uma festa. Eu e meus primos brincávamos de pega-pega dentro de casa. Só conseguíamos andar quando passávamos por aquela porta que era mantida, constantemente, fechada. Meus primos, que moravam na fazenda, diziam:  - esse quarto é assombrado, o avô trancou para  o fantasma da avozinha não sair por aí. A gente ficava todo arrepiado. A noite eu não dormia, ia para a cama de meus pais. De dia acabava esquecendo e encostando na porta para esconder de um, quando lembrava ou era lembrado, saía correndo para o colo da mãe.

        - Vai virar esqueleto!  - gritava um.

        - Quê isso mininu!  - dizia Zefa.

      - Nada não, Zefa - respondia com olhar temeroso da Zefa contar para o vô.

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     Um quarto fechado! Aquilo deixava as crianças intrigadas. Por que ninguém entrava naquele quarto? Quando perguntávamos  para os adultos, nada respondiam.
     Fazíamos grupos para investigar o caso. Laurinha perguntaria para o avô, já que ela era sua queridinha (era a primogênita);  Joana para a tia Esmeralda, sua mãe;  Laércio para Bastião, marido da Zefa, pois ele ajudou a construir aquela casa. Enfim, cada um para uma pessoa de sua confiança. Só o doido do Pedro foi perguntar ao Castor, o cachorro cego e aleijado de meu avô. Os meus tios entreolhavam-se e nada respondiam, aumentando ainda mais nossa aflição.

      Os meus primos inventavam as mais absurdas estórias, contavam baixinho:

      - O avozinho guarda o corpo da avozinha aí dentro.

     - Não é não, seu bobo! São só as coisas da avó - dizia um mais velho.

      Ficávamos mais aliviados. Aí vinha outro e dizia:

     - Então, por que o avozinho mandou o Bastião chamar o padre para benzer a casa outro dia?

    - É isto mesmo!  - dizia, outra, braba. O avozinho falou que tinha fantasma na casa, havia muito barulho de noite. Todo mundo se benzia.

    A conversa só era interrompida quando Zefa chamava todos para o lanche. Aí, tudo era esquecido.

     Nos dias de chuva, ficávamos presos dentro de casa, que, por sinal, quase vinha abaixo, de tanto corre-corre, brigas, choros  e muitos gritos. Meu avô  perdia  a paciência, pois acabávamos com seus cochilos:

       - Jogo um trem na cabeça do'ceis!- dizia brabo.

      Era o suficiente para nossa imaginação rolar  solta:

      - Um trem? Credo! O avozinho é forte assim?

      - Nossa! O avozinho é mau, vai matar todo mundo.

     O silêncio imperava e vinha novamente o quarto fechado. Meu tio Gustavo ia passando e ouviu uns cochichos e, como não gostava de mistérios nem medos, quis logo saber do que se tratava. Contamos com um certo receio. 

     - Pera um pouco - disse para nós. Depois de alguns minutos, vem meu tio com uma chave nas mãos.

    - Vamos lá, criançada, vamos entrar no quarto mal assombrado. Quem tem medo não pode entrar, só os corajosos. Aí tem caveiras, morcegos, mula sem cabeça - dizia  com a voz fantasmagórica.


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      Nós ficamos parados sem saber o que fazer. Entrar ou sair correndo e esquecer tudo?  Ah! mas como escapar do poder de meu tio:  barrou-nos e tivemos que entrar no quarto escuro, um atrás do outro, morrendo de medo.

      - Vamos lá, seus corajosos! Vocês não queriam saber o  que tinha aqui dentro? Pois então!

     Meu tio finalmente acendeu a luz e, para nossa surpresa, só havia muitos móveis velhos, caixas fechadas, mesas, guarda-roupa sem porta, prateleira de livros, só coisas  velhas e nada, nadica  de minha avó.


* Fátima Carozzi participou do Curso de Escrita Criativa (turma 2017/2) da Prosa - Cursos e Consultoria

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