IN FÉRTIL (Amanda Marcondes)

 (desenho feito por Hilda Hilst - acervo Unicamp)

IN FÉRTIL
(Amanda Marcondes) *



À Karen, por ter me devolvido as palavras.



I



Isso de se falar baixo,

Isso de tanto pedir permissão,

Isso é tudo tão seu, meu pai?



Quando cheguei nesse mundo,

Meu grito e choro eram voz

meu modo de expressão.



Ouvidos tantos,

Todos abertos a qualquer palpitar ou gemido meu.

Mão, sempre abertas para me atender.



Eis que em mim, foram plantando palavras

Cada vez mais complexas, ambíguas, difusas até.

E em nenhuma delas cabe o nome exato do meu desejo.



Da mão incisiva e espalmada

Da fala alta sua

Começaram a surgir fantasmas

Que hoje parecem querer me silenciar,

Mesmo na sua presença ausente.



II



Quando saístes puder ser lua,

Trajada em vestes embriagadas

Tragada pela noite adentro.



Fiz-me canto, rio, solo, vales,

Partidas,

Distancie-me assim do sangue dentro sangue

E mergulhei nas possibilidades do ser.



Cai em tentações

Sem qualquer culpa católica

Talhei-me erótica e humanamente mulher

Deitei-me com ela,

Conversei e nesse novo trânsito

Recriei-me.

Adentrei seus eus-medos

Identificando o mesmo nó em pelos travados nas gargantas.



Conheci alguns Eles,

Senti gostos, odores e texturas diferentes dos meus

Conheci mãos e peitos menos endurecidos,

Almas de pernas escancaradas sem tanto medo de entrega,

E até gemidos encontrei entre Os e Es.



Absorvi de cada pele o desejo e peso exato

Para compor em mim os espaços que profundamente faltavam.



Aviso que desde já tenho me alimentado bem.



III



Já no silêncio,

Na beira das inquietudes

Ainda me vejo terra, pai.

E de medo sigo embotada até as tantas

Buscando inserir aguaduras no tempo e nos vãos

Desse novo corpo de carne e ideias que jamais conheces-te.



Desconhece-me, certamente.



Aonde se encontra minha voz, mãe-eu?

Que nos dias fluídos ainda me conduz a possíveis do existir.

Sou um oco cheio de tudos.

E repito que as palavras já não dão conta do meu desejo de transbordar.



Estou fertilizada de eus.
 
* Amanda Marcondes participou da segunda turma do Curso de Escrita Criativa/2017 

(desenho feito por Hilda Hilst (1981) - acervo Unicamp)

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