Depois das Férias (Ricardo de Jesus Silveira)





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DEPOIS DAS FÉRIAS

Ricardo de Jesus Silveira*
        
O que vou lhe contar agora ocorreu há muito tempo. Quando você, eventual leitor, passar por aqui, provavelmente já terei ido embora, mas isso é o de menos, desaparecer é uma condição inexorável que nos alcança a todos. O que não é comum, ainda que supostamente tenda alcançar a maioria, foi o que vai contado nessa história, resumida, que vivi e que, se não me deu a alegria acalentada por um breve período da adolescência, também não me deu nenhuma justificativa minimamente aceitável, que me fizesse compreender porque a vida que vivemos tenha que ser assim.
Eu, minha mãe, meu pai e minha irmã, que não conseguia ir ao banheiro sem o celular, passamos três semanas como se fôssemos nababos: comida boa de peixes e frutos do mar; dormir sem hora para levantar; as inesquecíveis pescarias e os passeios de barco com meu pai, explorando as ilhotas ao longo da costa, tiveram sabor de aventura. Foi um presente prometido há muito tempo pelo pai e, finalmente cumprido.
Foram as melhores férias que tivemos, como a compensar as muitas expectativas acumuladas em anos anteriores, as muitas desistências de última hora de férias planejadas que foram substituídas por visitas rápidas à casa da avó, que sempre nos recebia feliz, pois a saudade que tinha da sua única filha e, especialmente, de sua netinha, de quem era madrinha e para quem fazia todos os doces que sabia, era uma felicidade vista nos seus olhos cheios de luz quando lá chegávamos e de desamparo quando saíamos.
Desistências que se impunham por força do trabalho do pai, o que obviamente nos frustrava a todos. Mas, era um trabalho do qual meu pai muito se orgulhava. Referia-se sempre ao banco, onde era gerente, como o seu banco: “meu banco fez isso”, “meu banco fez aquilo”.  Olhava meu pai com orgulho, sentia ser uma pessoa importante e feliz, mesmo sabendo que sua cabeça estava mais no banco que em casa.
Infelizmente as férias terminaram e, quando estávamos preparando para voltar a secretária do pai ligou para informá-lo de uma reunião no dia seguinte, na qual deveria estar presente. Durante toda a viagem de volta para casa não economizamos sonhos, imaginamos as futuras férias como melhores que as que acabávamos de ter. E rolou de tudo, de pesca submarina e saltos de paraquedas a viagens para a Europa, num clima de muita alegria. O pai estava feliz! Voltávamos para casa e o pai para “o meu banco”.
Chegamos à noite e na manhã seguinte lá foi o pai para o “seu banco”. Não voltou para o almoço, não telefonou à mãe e só chegou em casa no início da noite. Estava desempregado! A alegação era a necessidade de uma tal “reestruturação do banco”, com a qual não precisariam mais dele. Não reconheci nele o jeito de sempre, o olhar tranquilo e confiante deu lugar a olhos cansados e tristes, que olhavam para o chão. Minha mãe não sabia o que fazer, entrou e saiu do quarto e apenas nos disse: “deixem o seu pai em paz, ele precisa descansar”. Naquele mesmo dia, de madrugada, minha mãe chamou a ambulância, e meu pai foi para o hospital. Estava enfartado!
         Ah! Desse dia em diante nossa história começava a ser outra...
         __ Menino! Desligue logo esse chuveiro! __ gritou minha mãe da cozinha.
__  Mas acabei de entrar, mãe! __ Já esperando que não ficaria sem resposta.
__ Não interessa! E não tem mais nem menos. Toma banho frio que faz bem pra saúde.
__ Bem pra saúde?  De onde ela tirou isso? Antes não podia porque ficava resfriado, agora faz bem, vai saber... ___ pensei.
Lembro-me bem dessa conversa, quer dizer, não era bem uma conversa, pois só valia o que ela dizia. E assim foram dias, meses, na verdade os três anos que se seguiram à morte do meu pai.
­         Como gerente tinha uma renda que nos dava segurança e conforto. Morreu três meses depois de dar entrada no hospital. Por ironia, foi num dia ensolarado, bonito em que cheguei ao hospital para render minha mãe e fazer companhia a ele, mas já a encontrei chorando no corredor, em frente à porta do quarto, onde o médico e a enfermeira tentavam, em vão, reanimá-lo. A morte esperou que completasse exatos três meses numa cama de hospital, talvez para a família encontrar um chão para pisar.
Neste dia foi a última vez que vi minha mãe chorando. Era um choro compulsivo, desesperado, ao mesmo tempo silencioso, de respiração abafada, contida, até me ver e me abraçar de um jeito tão apertado como nunca tinha feito antes. Ficamos os três: minha mãe, eu, com 14 anos, e minha irmã, com 12. Certamente, essa era a parte assustadora da herança que caberia à minha mãe conduzir a terra firme. Ela estava transtornada e em seus olhos havia muito mais que tristeza, muito mais que medo.
         As despesas com o hospital foram cobertas com o plano de saúde familiar, logo depois cancelado, pois não havia renda para bancá-lo. Um e outro investimento que meu pai havia feito valeu-nos para quitar o que restava de prestações da casa e os dois carros, vendidos na “boca”, por meio de um colega de trabalho do meu pai, nos sustentou por pouco mais de um ano. O que foi providencial, pois, não havia mais renda e aos poucos a ficha foi caindo, junto com uma insegurança que nunca tínhamos experimentado.
         Duvidava que minha mãe saberia sustentar a mim e à minha irmã. Mas, para minha surpresa, surgiu, de repente, empurrada pelas circunstâncias, uma mulher cheia de iniciativas, e a primeira que tomou foi mandar minha irmã para a casa da minha avó, mãe dela, que vivia sozinha com a aposentadoria do avô. Era para ficar por lá até as coisas se ajeitarem, o que prometia para logo. Esse foi o argumento que convenceu minha irmã, além do fato, é claro, que minha avó morava na praia.    
Fiquei com minha mãe que me queria por perto. E, como a esmagadora maioria dos adolescentes, alheio ao entorno que não me dizia respeito e ignorante do mundo além do umbigo, começava a me imaginar como o homem da casa; só mais tarde, compreendi que minha irmã exigiria mais cuidados se ficasse e, certamente, ajudaria menos. Com a avó estaria protegida e até poderia ajudá-la, se conseguisse vencer sua preguiça crônica, deve ter pensado a mãe. Ah! Quanta choradeira da minha irmã e a promessa da mãe de nos vermos logo. “Certamente no Natal”, disse a mãe, “afinal faltam só cinco meses, e lá a escola é praticamente do lado, você ficará bem”, disse finalmente a mãe; e pensei, ingenuamente, 800 km de distância da avó não parecem uma eternidade.
A segunda decisão de minha mãe foi trabalhar numa doçaria, perto de casa. Ela fazia doces muito bem, o quindim e o bolo de chocolate eram deliciosos e, então, pensou ser possível fazê-los para vender. Mas, claro, não tinha a técnica para fazer como mercadoria, como racionalizar custos, definir tamanhos certos que agradassem aos consumidores da forma adequada para fazê-los matar a curiosidade, coisas que parecem óbvias, mas que se não souber fazer perde-se ou deixa-se de ganhar e o negócio não prospera. Mesmo quando há profissionalismo, muitas vezes, a coisa não vai pra frente, despesas inesperadas e concorrência tornam o negócio inviável. 
Mas, passados um ano como empregada, não deu outra, julgou ter obtido a experiência buscada e, com a determinação que exibia, reforçada pelo baixo salário, minha mãe encheu-se de coragem e tomou sua terceira decisão importante: abriu sua própria doçaria. Primeiro, só como fabriqueta doméstica, com produção por encomenda, sem balcão de varejo, para o que não encontrou dificuldade. Era coisa simples, com custo baixo, só eu de empregado, e sem registro, é claro. O que para mim pouco importava, sendo de minha mãe, o negócio era meu, pensava. E nessa, passei a ajudá-la em tempo integral e fazer o colegial à noite.
No começo achava que estava tudo bem, mas logo percebi que não saíamos do lugar, a fabriqueta estacionou, faltava dinheiro para investir e fazer o negócio decolar. Faltava até para nossa sobrevivência digna, como o necessário que se precisa numa casa: as roupas eram as mesmas de anos anteriores, o tênis, do mais simples, como a higiene pessoal, e a comida, muito distante daquela que conheci quando o pai era vivo. Para consolar, a mãe dizia, vai se aguentando, tudo vai melhorar. Mas a perda da confiança denunciada pelo olhar angustiado de minha mãe e a frustração estampada no seu rosto, doíam muito. Sentia-me cada vez menor, um peso, e o pior, impotente, sem perspectiva. Ia fazer 18 anos, já prestes a não ser mais um adolescente e, embora a cabeça não acompanhasse de forma crítica o que vivia, era um jovem incomodado com as carências que nos cercavam. 
Decidi, sem falar com minha mãe, procurar emprego. Fiz um currículo baseado na explicação que me deu a professora da escola. Nele, dizia que tinha experiência como “ajudante de doceira”, acho que ninguém sabia o que era isso, e nem eu, mas foi o nome que dei para lavador de forma de bolo, batedeira e chão de cozinha, mas que também sabia trabalhar como office boy, fazer pagamentos em bancos e levar encomendas, etc. Todo o currículo não dava meia página datilografada em espaço 2. A única referência de emprego era a fabriqueta da minha mãe, cuja parte contábil era feita por ela mesma. Era ridículo, mas a minha situação ridícula não era culpa minha.
Rigorosamente, não tinha experiência nenhuma, e sabia disso. A molecada, com quem tinha contato na escola, sabia muito mais, a maioria já tinha passado por dois ou três empregos. Certamente meu caso não diferia de nenhum deles procurando o primeiro emprego. Assim, achei o máximo quando um colega da escola foi promovido no trabalho e me indicou para o seu lugar. E lá fiquei, sem registro, como experiência, assim justificaram, e ganhando uma ajuda de custo próxima de meio salário-mínimo. Não entendia porque para ser office boy precisava de experiência, mas era pegar ou largar. Peguei! E três meses depois fui mandado embora com a simples alegação: “não precisamos mais dos seus serviços”.
Esse primeiro tranco, como mão de obra barata, não deixou de me ensinar muito sobre o mundo em que vivia e minhas possibilidades nele. A lembrança de meu pai, despedido de forma abrupta, depois de tantos anos de trabalho dedicado, reforçaram a impressão negativa dessa primeira experiência de emprego. Mas, vai melhorar, considerei, esse ano presto vestibular e se entrar as perspectivas mudam. Não sabia exatamente o quê, mas, o emprego que vier depois disso, pensei, será qualificado…, depois repensei o que tinha pensado, lembrei outra vez o caso do meu pai, e me dei conta de que: com qualificação ganha-se melhor, mas isso não garante emprego. A lembrança de que meu pai tinha curso superior e foi despedido ficou martelando na minha cabeça por muito tempo.
Nossa fabriqueta não ia mesmo para frente e, quando minha mãe recebeu uma carta da avó dizendo-se doente e que a neta não mais a obedecia, tendo dormido fora alguns dias, sem avisá-la e sem dizer com quem, minha mãe tomou sua quarta e quinta decisões: a de fechar a fabriqueta e mudar-se para a casa da minha avó para cuidar da própria mãe e da filha.  Em menos de um mês colocou a casa a venda e em dois estava morando na praia com minha avó e minha irmã. Fiquei sozinho morando em uma pensão que a mãe deixou três meses pagos. Tinha onde dormir e comer, o que me era fundamental. Num daqueles dias soube que havia passado no vestibular e fiz minha matrícula. Era estudante universitário. 
A universidade como um todo foi uma descoberta fantástica, não tinha amigos antes e passei a ter muitos, amigos que moravam com suas famílias e me levavam para suas casas para almoços e festas de famílias. A universidade foi, literalmente, minha segunda casa, a pensão eu não contava, pois foi apenas dormitório, e quando lá ficava era no quarto de dormir ou no salão onde se faziam as refeições. Para completar esse melhor início de ano que passei depois da morte do meu pai, três meses depois de começar o curso, consegui lugar para morar na Casa do Estudante e participar de um projeto de pesquisa que me dava uma “bolsa de iniciação científica”. Era tudo que precisava: participar de pesquisa para potencializar a formação acadêmica com estudos de investigação científica, a casa para morar e a alimentação básica.
Naquele mesmo ano aproveitei as férias de julho e fui visitar a minha mãe, que até então não me havia telefonado e nem mandado carta. Junto a alegria de ver a família, minha mãe me pareceu alheia ao que a rodeava, isso me preocupou e perguntei se estava tudo bem, respondeu-me que sim, apenas um pouco cansada, e acrescentou, “mas vai ficar tudo bem”. Minha avó não me reconheceu, estava com falhas de memória, mas exibia o mesmo rosto generoso que sempre teve. Minha irmã já era mãe de uma menininha, muito bonita, e estava separada do pai da criança, que nunca conheci. Estavam vivendo modestamente, mas sem dificuldades insanáveis e, apesar dos problemas de saúde da avó, minha sobrinha enchia a casa de alegria.
Na volta daquelas férias, logo que cheguei fui ao supermercado comprar uma massa para um espaguete, e vi no mercado um menino de uns 15 anos, se tanto, ser preso por tentar roubar uma barra de chocolate. Seu rosto era de fome. A truculência como foi tratado pelos seguranças do mercado me indignou. Propus-me a pagar o chocolate para que o deixassem ir embora; uma senhora que presenciava a cena fez o mesmo, mas uma outra, não muito bem trajada, manifestou-se de forma diferente, achava que o menino merecia ser preso para nunca mais roubar, dizia ela.
Ao voltar fiquei sabendo que um aluno, da Casa do Estudante, estava preso há mais de um mês por roubar uma lata de leite condensado num supermercado. Coisa estúpida, dele, pensei, mas não o suficiente para merecer prisão. Voltei a me indignar, pois, alguma atividade de trabalho social como pena seria mais adequado, educativo, mas prisão? Pareceu-me desproporcional! Sem condições, sem emprego fica difícil existir com dignidade, pensei.
E, no chuveiro da casa alguém cantava uma conhecida canção, “navegar é preciso, viver não é preciso”.
Bem, mas tudo isso já ficou bem para trás... O aviso de embarque do meu vou para Bogotá já foi dado pela segunda vez, preciso ir, vou sempre, e sempre a trabalho. 


* Ricardo de Jesus Silveira participou do Curso de Escrita Criativa, 2017, segunda turma.

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