Um conto no contralto (Maria Cristina Moreno Matias)




Um conto no contralto
(Maria Cristina Moreno Matias*)


Uma mulher está sentada na mureta de um quintal à sombra de uma jabuticabeira. Seus olhos pousam nos muros que rodeiam a casa. Outrora, foram tingidos com uma mistura de sobras de tintas, utilizadas na pintura da casa, e, agora, têm um matiz de rosa desbotado. Ela gosta, pensa que dá um ar romântico ao quintal. No entanto, seu estado de espírito  comporta um desassossego, não sabe ainda identificar de onde vem essa efervescência.
A mulher mexe em lembranças de experiências vividas, vestígios guardados na memória, um passado, quem sabe, uma mal curada ferida que às vezes lateja.
As recordações vêm como um pé de vento, em movimentos fortes e circulares, trazendo poeira, rodeando ciscos e ramos soltos de árvores. Elas não surgem de forma linear, como numa linha do tempo, têm, na verdade, o movimento dos redemoinhos.
Nessa turbulência, vozes de diferentes tessituras reberveram nas três faces das paredes do muro e a chamam para uma romaria.  As vozes são familiares, femininas, de timbre mais baixo e pesado, evocadas em tempos diferentes, às vezes são infantis, outras pré-púberes, outras mais encorpadas, vozes de adulto. A mulher está prestes a fazer uma viagem e, embora sinta o vento e tente governar a direção, não sabe se pode controlar o ponto de chegada.
Na rota do redemoinho ela alça voo e o giro a faz sentir vertigem. Rodopia no ar e faz um pouso em outro canto da casa. Ela consegue sentir o mormaço de uma tarde modorrenta de verão, uma voz infantil a conecta com o momento vivido.
- Segura firme, disse a menina para o irmão menor.  Cuidado, não deixe cair, reafirma a menina que havia encontrado um ovo de passarinho e o depositara nas mãos do irmão.
Para melhor desfrutar a descoberta, as crianças se acomodam nos degraus da escada que ladeia a casa. Este é o lugar que costumam ficar quando querem viver histórias inventadas. Agora este também é o local ideal para observar aquela delicadeza que tinham nas mãos. O menino segura o ovo em suas mãozinhas sob a vigilância da irmã. Em certo momento, para proteger o ovo, o menino envolve-o com os dedos e fecha suas mãos. Ouve-se um pequeno estalido: o ovo explode entre os seus dedos.
Em um primeiro momento, incrédula e furiosa, a menina esbraveja com o irmão. Ela achara fantástica aquela descoberta e queria que ele também sentisse em suas mãos aquele minúsculo ovo, a sua casquinha lisa e a sua leveza.
Depois pensa no que ocorrera. Ela não deu a ordem para que ele segurasse firme o ovo? Pois, então, ele obedeceu. Nada mais podem fazer. Nem naquela ocasião e nem agora, quando o redemoinho retoma seu curso e a carrega para dentro da casa.
 Está na cozinha onde um jantar está sendo preparado. É um jantar diferente daqueles do dia a dia. O cardápio é mais elaborado, selecionado para convidados especiais. A mãe da menina é auxiliada pelas cunhadas e capricha na arrumação da mesa. Saladas, o prato principal e a sobremesa são preparados e, depois de prontos, são reservados em fornos e na geladeira para esperar os convidados. A menina antevê o prazer de saborear aquela sobremesa que só pode comer no dia em que distintos convidados vêm para jantar. Camadas de creme de cor rosada e de brancas espumas são distribuídas em uma grande travessa.
Entre os esperados, parentes que só são convidados para jantar em datas especiais, um gerente de banco, sua esposa e a filha, esta, uma linda menina de longos cabelos loiros e um padre em sua batina preta que, ao chegar, toca a campainha da casa e faz uma graça para a menina que o atende escondendo-se atrás da porta.
O doce veio à mesa e a menina finalmente recebe seu prato. O padre, então, faz a segunda graça, com uma colherinha de sobremesa leva pequenas porções à boca da menina que, constrangida com os olhares dos convidados, deixa o doce sobrar no prato. A menina loira olha a cena com olhar triste.
O redemoinho agora leva a mulher para uma noite de Natal na casa de um tio, irmão de sua mãe. A sensação é do aroma de carne assada de um jantar fora de hora. Mas é uma noite de encantamento e os adultos permitem que, nessa ocasião, as crianças fiquem acordadas até mais tarde, pois, quem contém a euforia da espera pelos presentes? O corre-corre das crianças, a conversa dos adultos, entram noite adentro. Quase próximo à meia noite, momento em que todos irão se abraçar desejando um feliz natal, a família do anfitrião está angustiada porque ele saiu para cumprimentar amigos e ainda não voltou.
A menina está do lado de fora da casa e grita:
- Chegou, o tio chegou!
O tio, finalmente, chega, mas não pelas suas pernas. Entra carregado pelos braços dos amigos, embriagado, sem a noção de que todos o esperam e que é noite de Natal. É colocado em sua cama e, logo em seguida, dorme profundamente. A cena é vista por todos e acompanhada por palavras de indignação e revolta. Alguns familiares, como a mãe da menina, retornam para casa, outros não vêm motivos para desperdiçar a comida. A menina se assusta ao ver o tio naquela condição e, entristecida, tem pena da avó que chora pelo filho.
A evolução desgovernada do redemoinho leva a menina para um passeio num dia de domingo a uma cachoeira próxima à cidade. Outra família se junta a eles, todos acomodados na Kombi do pai. Os pais são colegas de trabalho. O amigo do pai é jornalista e diretor do principal diário da cidade. No caminho os jovens apreciam a paisagem, predominantemente, de grandes propriedades rurais. Em dado momento, a filha mais velha, do amigo jornalista, olha para a vegetação onde o gado pasta e diz:
- Uns com tanto e outros com nada.
A menina não compreende, naquele instante, o sentido daquela frase, mas se cala. Quando voltam do passeio e chegam à casa, pergunta a sua mãe o que a jovem quis dizer. A mãe disse que, talvez, nas conversas que ela ouve do pai, ele fale do desejo das pessoas de terem seu pedaço de chão. Pouco tempo depois, a menina soube que o pai daquela jovem foi preso porque suas ideias, expressas no jornal, foram consideradas subversivas.
A massa de ar do turbilhão a faz movimentar-se em sua viagem, a um tempo mais à frente. Na casa dos avós paternos, vizinha à sua, há um frescor de juventude, de alegria. De uma vitrola se ouve a voz de Nat King Cole: “it was fascination, I know”.  Ela está no quarto da tia solteira que se arruma para sair e encontrar o namorado. Tudo dentro desse quarto é bonito aos olhos da jovem menina: os frascos de perfumes e de maquiagem que se alinham por cima da penteadeira, o armário que guarda os vestidos e os sapatos de salto alto.
A tia pede que a menina feche o zíper do vestido que é de cetim e marca a cintura. O cabelo foi recolhido em um coque no alto da cabeça. A tia sai do quarto e diz à menina que um dia a levará ao cinema.
O quarto do tio, onde também pode entrar o irmão mais velho, é mais modesto. Em seu armário, uma água de colônia, um pente e produtos para barbear-se. O tio tem um par de luvas de boxe e ensina alguns golpes para o sobrinho. Ele acende um cigarro e dá uma tragada. Chega próximo à cabeça da menina e solta a fumaça em seus cabelos. A menina se olha no espelho e a visão da fumaça saindo de seus cabelos a faz sorrir.
O torvelinho traz a mulher de volta de seu passado distante para o seu presente. Em um primeiro momento, uma sensação de mal-estar, causado pela diminuição do movimento, a deixa prostrada. Depois, não há mais movimentos em espiral e ela se aquieta.
A mulher está sentada na mureta do quintal embaixo da jabuticabeira. As vozes continuam a pulsar em sua mente, em tom mais baixo, tão longínquas estão, e ela faz um retrospecto da viagem e dos acontecimentos que revisitou. Nada do que ocorreu esteve sob seu controle, era a vida em seu curso, a ser vivida em sua impermanência.
Ela se dá conta que envelhece.
Percebe que a jabuticabeira está carregada de frutas e que maritacas barulhentas se confraternizam no topo, celebrando o alimento, observadas por um casal de gatos pretos. Lembra que a temporada de jabuticabas logo irá terminar e o chão já está forrado de frutas apodrecidas e de cascas secas. Ao menos, os pássaros aproveitaram os frutos desta estação.
Repara nas outras árvores que cresceram no quintal, elas também seguem em mudanças espontâneas cada qual em seu tempo e num determinado estado. Aliás, nesse mesmo ano, as jabuticabeiras voltarão a florescer.
Ocorre-lhe indagar-se sobre o propósito dessas reminiscências. Saudades, melancolia ou sua eterna mania de fazer recortes de situações vividas, que lhe são tão caras, e que permanecem suspensas no varal de suas memórias.
As coisas são como são, pensa a mulher, só que ela constrói significados afetivos para os acontecimentos e estes permaneceram em sua alma.
Mas, outro pensamento, este mais perturbador, a faz estremecer: quem sabe, se o ato de tornar presente todas essas lembranças, não é também uma espécie de escudo para a loucura da velhice?
A mulher dá um longo suspiro, levanta-se e vai para a sala da casa onde sua mãe está acomodada em um sofá. Observa que ela ri muito e está com duas cabeças de cebolas nas mãos. A mãe lhe diz que foi o filho quem lhe deu, mas não sabe o porquê, pois só havia lhe pedido um copo de água.
A mente da mulher parece esvaziar-se de todas as vozes que, a pouco a visitaram, e ela, desveste-se de qualquer pudor, de qualquer censura, e pode também rir da cena que presencia.






* Maria Cristina Moreno Matias participou do Curso de Escrita Criativa

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