Zoé (Elza Sogaiar)


 
(Good Morning Ms. Mediterranée, de Juarez Machado)
 
Zoé 
(Elza Sogaiar*)

Zoé debatia-se, desde menina, contra as imposições que recebia sobre o que vestir, o que comer, o que sentir, o que ler, onde por as mãos, como cruzar as pernas, transformando-se numa rebelde desde a chupeta.
Moça bonita, com ar irreverente, vivia escapando dos olhos da tia que a vigiava, perversamente, como mortificada por sequer imaginar os prazeres que a vida, e ainda mais seu corpo, poderia lhe dar. Seus pais entregaram a educação da filha a essa irmã solteira chamada Morfina. Certamente por preguiça de lidar com as frustrações que distraídos causavam à filha, a qual deveria educadamente esperar o noivo que escolhessem para ela.
Zoé se espetava para acordar desse pesadelo. Sentia-se um cão com coleira toda vez que a tia sugeria um passeio pelo Cais do Porto de sua cidade. Argumentava dramaticamente, em vão, a seus pais. Até que exausta confortava-se, entregando-se a suas fantasias e devaneios com os futuros quadros que um dia pintaria.
Era enclausurada em um corpo que clamava por amor. O silêncio imposto anulava-lhe a boca. Os pais tinham os ouvidos e olhos costurados, cegos e surdos como se apresentavam a ela. Sua tia Morfina envolta em uma mortalha sem corpo, era só uma cabeça gigante. Homens-deuses que flutuavam pelas águas do mar. Via também amantes com seus corpos fundidos e costurados um ao outro. Por vezes, achava que a loucura lhe estava tomando a sanidade, mas sentia-se viva toda vez que se entregava a essa experiência pictórica.
Algo mais a distraía com sua alma de artista. Acontecia nos passeios para tomar sol. Fitava o rosto dos desconhecidos, qualquer um e criava histórias para aqueles seres. Ia assim para outros mundos, outras terras, onde a magia a libertava.
Foi em uma dessas intermináveis tardes em que passeava para dentro de sua imaginação ao lado da tia Morfina a qual, ocasionalmente, se afastara para matraquear com alguma fofoqueira da cidade, que Donato, um estivador do Cais, forte e viril, de olhos azuis, esbarrou-lhe na saia. Contra as regras de seu estereótipo, gentilmente, lhe pediu desculpas arrancando de Zoé o mais belo sorriso e um longo suspiro. Seus olhares falaram mais que palavras, as quais Morfina jamais permitiria proferirem.
A pele alva e a limpeza de sua saia engomada contrastavam com o suor e a pele morena de sol de Donato. O coração de Zoé batia descompassado como uma
caldeira de navio, mas, disfarçando, afastou-se do moço com quem passou a viver em seus sonhos todas as noites.
Morfina, cada vez mais desconfiada das mudanças que observava na sobrinha, aumentou a fiscalização sobre ela e sugeriu aos pais que a mandassem para o Rio de Janeiro estudar Artes. Afinal, a menina sonhava em ser pintora e já tinha um primo que estava se dando muito bem assim. Era melhor estudar do que estragar a sua vida com um borra-botas qualquer.
A tia solteira e perspicaz havia pesquisado a vida de Donato e descoberto que seu pai português tinha sido rico e proprietário de várias chácaras na cidade. Porém, dado a jogos de azar, fez muito sofrer sua esposa, perdendo todo seu dinheiro e causando aos filhos o dissabor de ficar sem estudo e precisar trabalhar em qualquer coisa para alimentar os irmãos menores.
Assustados com as proféticas e negativas palavras de Morfina, os pais da pobre Zoé concordaram e compraram, sem delongas, as passagens para o próximo navio. Zoé mergulhada em seu mundo interno sonhava com luzes, cores, sombras e amores. Liberdade, posteridade, imortalidade eram hinos que saiam de seu piano, que tocava com vontade, e até faíscas pareciam sair dele, tamanha intensidade em que colocava nas teclas sob seus dedos.
Com as malas prontas, despediram- se. Os pais aliviados colocaram sua filha no navio, certos de que estaria em segurança. Morfina sentia-se vitoriosa, pois sempre desejara conhecer o Rio de Janeiro. Além disso, escondia seus motivos egoístas. Nada nunca foi por acaso. Sabia que não deixaria a sobrinha descansar enquanto não a transformasse numa sósia de si mesma.
Tinha a infelicidade em seu coração e sabia que na velhice precisaria de alguém para lhe cuidar. Já havia escolhido Zoé para esse fim e não desistiria enquanto não lhe matasse qualquer desejo vivo, qualquer fiapo de alegria.
No navio, relaxou logo no primeiro dia, confiando a sobrinha a outras meninas de boas famílias que por ali estavam. Aproveitou para descansar. A viagem prosseguiu sem sobressaltos. Zoé apresentava-se a tia cada vez mais feliz, rosada, com os olhos brilhantes, legitimando seu nome e confirmando a Morfina que havia tomado a melhor decisão, pois estando feliz, seria muito mais fácil domar a vida da sobrinha.
Foi no dia da chegada ao destino que suas certezas despencaram. Rabugenta como sempre, começou chamar Zoé aos gritos, pois não a encontrava de pronto junto às meninas e já era hora de descer do navio. As amigas cheias de risinhos marotos olhavam-se com a malícia de cúmplices caladas, que assim permaneceriam até o último minuto. 
Com muito espanto, Morfina, pela primeira vez, perdeu a voz. Seus olhos petrificados pousam numa Zoé enlaçada com Donato, que arrumara emprego no navio no mesmo dia em que soube, na cidade pequena de São Francisco do Sul, da partida de sua bela amada. Desde que a conheceu, Donato também sofreu transformações internas, capazes de lhe fazer conseguir qualquer coisa para fugir com ela.
Zoé empaticamente acabou por sentir pena de Morfina. Olhou para ela que emudecida e espantada havia congelado  a cena, transformando-se, talvez, no que sempre fora - um espantalho afugentando o prazer alheio. Aproximou-se da tia e, carinhosamente, mas com satisfação, não se pode negar, disse-lhe: a culpa não é sua, estamos em 1910, pleno século XX, vocês não podem mais mandar em mim, cuide da sua vida, por favor, que da minha cuido eu.
A sobrinha volta para os braços de Donato, meio topetuda, com ares divertidos que lhe eram tão peculiares. Morfina, petrificada, começa a dar passos para trás, achando que assim anularia aquele momento.
Enlouquecida em seus pensamentos, considera a ideia de entrar para um convento ou internar-se em um hospício. Que desilusão sofrera! Mas não percebe que, ao se afastar de costas, está indo em direção a uma fenda do navio.  Um dos tripulantes, com ares tímidos, porém forte, prontamente a agarra, jogando-a no convés. Desajeitadamente, o homem cai sobre Morfina que primeiro titubeia mas depois, inspirada na sobrinha, o agarra lascando-lhe um longo beijo. Morfina de boba, no fundo, não tinha nada.
Liberta daquele encosto chamado tia, Zoé casou-se às pressas, pois chegou grávida ao Rio de Janeiro. Foi o tempo de voltar correndo e sem enxoval, em sua cidade natal, começar sua vida nova, cheia de quadros coloridos.

*Elza Sogaiar participou do Curso de Escrita Criativa 2016

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