Os desejos da menina (Ileizi Fiorelli)



Os Desejos da Menina

(Ileizi Fiorelli*)

Encontrou-o pela primeira vez quando jogava voleibol no colégio e ele era árbitro de uma partida. Olharam-se e uma compreensão imediata de quem eram, selou o início de um amor e de uma amizade dos tempos de adolescência. Daqueles que ficam guardados na memória, que levarão a sensação de leveza aos tempos futuros e, às vezes, aos momentos mais duros. Ajeitou o shorts e a camiseta, disfarçando as emoções novas. Acabou a partida e o moço pediu para acompanhá-la até sua casa. A menina respondeu que não precisava, ela iria direto para a biblioteca municipal emprestar um livro. O moço disse que a via sempre lá, pois morava ali perto, uma rua abaixo apenas. “Então vamos caminhando juntos”, aceitou a menina.
Comentaram da partida de vôlei e o moço elogiou a vitória do time dela. Seguiu-se um silêncio constrangedor quebrado pelo moço que lhe mostrou uma Revista de título “Visão”, um número especial de 1979, na página com uma propaganda de uma máquina de escrever Remington. Seus olhos brilharam! Ela ficou olhando a foto da pequena máquina de escrever alaranjada e passou a desejá-la.
Despediu-se do moço de dezessete anos e entrou na biblioteca com ares de quem já tinha ultrapassado os seus trezes anos, com autoridade de quem tinha amizade e reconhecimento de um moço do segundo grau. Ela, ainda no ginásio, tinha sido promovida a capitã de um time de vôlei, vencido um jogo e agora iria emprestar o livro que não lhe saia da cabeça: Guerra e Paz, de Tolstói. A professora de História comentou sobre o livro quando narrava as guerras de Napoleão no século XIX. O principal objetivo daquele dia era chegar à Biblioteca Municipal, da pacata cidadezinha do norte do Paraná, e emprestar o livro.
Seu rosto estava queimando, suado e vermelho por causa da partida de vôlei e do encontro com o moço, que fez seu sangue circular rapidamente e o coração ficar quase disparado. Sentia-se bem, entusiasmada, feliz, excitada e ansiosa ao mesmo tempo. A bibliotecária era uma baixinha, feia e a menina achava que ela era corcunda. Suas amigas diziam que não, que era impressão dela. A mulherzinha não gostava muito da menina porque ela vivia dando trabalho, ia muito à biblioteca, pedia livros que não tinham, queria levar mais exemplares do que o permitido, atrasava a entrega, tirava o sossego da solitária funcionária que era bem pouco visitada. A menina pegou os exemplares dos dois volumes Guerra e Paz e os levou até à mesa da bibliotecária, que de imediato a olhou com cara de quem pensa: “vou acabar com essa animação e excitação agora mesmo! ”.  “Você não pode emprestar esses livros, sua idade não permite que você os leia”, sentenciou a mulher. 
 Mas, a menina já tinha treze anos e até menstruava! Muitos diziam que ela já era uma mocinha. Aliás, por ser mocinha não podia mais fazer algumas coisas, como ficar na rua brincando com os meninos, tomar banho de chuva ou nadar quando estava menstruada. Devia ficar mais quieta em casa ou na biblioteca, seu refúgio. A menina insistiu. “Deixa eu levar, eu já leio a Bíblia e lá tem muita guerra também.” A bibliotecária ralhou com ela. “Agora você vai debater comigo? Cadê a sua educação? Pensa que a vida é do jeito que você quer? Não vai ler e pronto. Com quinze anos, talvez, você possa ler. O certo é depois dos dezoito anos!”  
A menina, então, perguntou rápida: “com quanto anos a senhora leu esses livros?” A bibliotecária disse que não tinha lido. No seu olhar despontava certa satisfação em ver que combatia o entusiasmo e o brilho nos olhos da menina. Agora, a menina estava como ela, sem esperança e desgostosa com a vida.
Chegou muito excitada em casa. A cabeça pressionada com mil problemas, na verdade, dois agora: o livro e a máquina de escrever. No fundo, tinha um terceiro problema, o moço bonito e inteligente. Pensava nas três coisas misturadas. Por que o moço mostrou a propaganda da máquina? Será que ele desconfiava que a menina acalentava o sonho de ser escritora? Por que ele se aproximara dela, uma menina do ginásio? Por que a Bibliotecária dificultou sua vida? Como ela iria conseguir o livro? A máquina de escrever? Iria namorar o moço? “Ah! Não, isso não, era muito nova”, pensou. 
 Lembrou de perguntar à amiga alemã se ela tinha na biblioteca pessoal. A biblioteca da família dela era a maior e a melhor da cidadezinha. Correu até a casa dos alemães e perguntou a avó sobre o livro. A avó lhe advertiu: “Você tem coragem de lê-lo? São dois volumes e mais de duas mil páginas?”. A menina disse: “Sim! A senhora pode me emprestar?” A senhora respondeu prontamente, “com certeza. Entre!” Finalmente ela iria começar uma longa jornada até as guerras napoleônicas na Rússia do século XIX. A senhora gorda, de rosto redondo e rosado, estilo camponesa, com olhar carinhoso e cúmplice de um desejo infantil, supostamente proibido horas atrás, acompanhou a jovem até as estantes repletas de livros. O coração disparou olhando todos os volumes e procurando o tomo Guerra e Paz. “Aqui estão eles”, disse a senhora.
A menina pegou-os com ansiedade e.... o título estava em letras e palavras que não conseguia ler. As edições eram alemãs. Segurou o choro. A senhora ficou chateada com o seu desapontamento. Desculpou-se, dizendo que havia esquecido desse detalhe, mas dispondo-se a traduzir para a menina ou ensiná-la alemão. A menina agradeceu, mentindo que iria pensar, pois precisava ler com rapidez para um trabalho na escola. A senhora perguntou: “não tem em português na Biblioteca Municipal ou na biblioteca do Colégio? ” A menina respondeu que iria verificar. Não podia contar que estava proibida de ler o livro.
A menina poderia resolver mais facilmente esse problema falando diretamente com sua mãe. Mas não gostava de levar demandas para ela porque tinha outros filhos e não pretendia dar mais trabalho. Certamente, a mãe acharia o livro para ela. Por que não falava? Mania de sofrer calada. Mania que fazia tudo complicar. Ou será que a menina era aquele tipo de gente que inventava essas fantasias de um sofrer superdimensionado dando vida ao querer pelo lado contrário, da resistência aparentemente externa? 
Na escola ficou calada vários dias, aborrecida. As amigas vinham conversar sobre os meninos bonitinhos, as tardes no clube, as provas do bimestre, a formatura do ginásio, e sabe-se lá o que mais. Estava obcecada pelo livro e pela máquina de escrever. Tinha medo até de pensar, mas, sim, pelo moço também. Pensou em resolver os problemas, juntando dinheiro que obteria dando aulas particulares para os estudantes das séries abaixo da sua na escola. Ela fazia isso e era bem procurada na cidadezinha. Com o dinheiro iria para Londrina, cidade maior onde encontraria o livro e a máquina de escrever. Sua cabeça doía só de pensar em todo esforço e engenhosidade que teria de ter para realizar os dois sonhos: ler e escrever. Quanto ao moço, ela pensou em se afastar dele, tinha medo de se envolver e acabar casando muito nova, como algumas primas que tinham se apaixonado antes dos dezoito anos. 
Nesses momentos de planejamento, costumava praguejar os pais. Pensava: Oh! Por que meus pais mudaram para aquele lugar?  Esse fim de mundo, sem asfalto, sem livrarias, sem bancas de jornais, sem lojas grandes, cinema bonito, sem vida!? Não posso perdoá-los! 
O pai, não. Tinha mudado, mas não ficava lá. Agora, ela, os irmãos e a mãe estavam condenados. De modo arrogante, achava-se diferente do lugar, das pessoas, dos pensamentos. Se pudesse fugiria de lá. Faria como o pai. Parecia com ele. Queria se livrar da mesmice dos povoados pequenos.
Dormiu, acordou, dormiu, acordou, foi para a escola, ajudou a cuidar da irmãzinha, jogou vôlei, andou de bicicleta, foi à missa, sempre torcendo para não encontrar o moço. Ela só pensava nele o tempo todo. Mentia para si, dizendo que pensava em como não o encontrar. Mas, só o fato de pensar o tempo todo...já demonstrava a importância que ele adquirira em sua vida.  Na cidade pequena seria impossível não se deparar com ele em algum lugar. Encontrou-o na biblioteca da escola. Ele se propôs a voltar com ela para casa para saber como estava a leitura de Guerra e Paz. Ela não prestou atenção nas aulas depois disso, ficou aflita querendo encontrar uma desculpa para dizer não. Quando tocou o sinal de final da última aula, não tinha inventado nada e saiu da sala.
Lá estava ele esperando por ela. Só via os risinhos das amigas, dos meninos, de toda a escola vendo aquela cena. Pronto. Agora a menina era vista como namorada do moço do segundo grau. A vida dela só complicava, a cada dia, parecia que não tinha mais paz, só guerra mesmo, uma batalha atrás da outra. E o bendito livro que não saia da cabeça. Seria esse o tema a tratar com o moço no trajeto até a casa. Tinha que contar para alguém e ele a seguia todos os dias, além de parecer amar os livros, talvez fosse uma boa ideia. Mas, e se ele a julgasse uma tonta? Ela mesma se julgava assim. 
Relatou-lhe o problema do livro. Ele achou logo uma solução. Emprestaria no nome dele e ela poderia ler. Resolvido. Ela sentia que estava se enredando num romance, mas parecia um destino mesmo das meninas naquela idade. Ela julgava mal as coisas sentimentais, como uma fraqueza humana.
Quando já tinha lido umas duzentas páginas do Guerra e Paz, descobriu que o livro tinha sido proibido por puro capricho da bibliotecária. O caso foi esclarecido pelo moço. A bibliotecária dificultou bastante o empréstimo. Disse que a menina tinha ido procurar e sabia que ele era muito amigo dela. Insinuou que estaria emprestando para ela e isso era errado. Disse ainda que não gostava da “gulodice” da menina, a qual não saia da biblioteca e lia tudo que tinha lá. Alguém deveria limitar aquele vício. A bibliotecária deu a desculpa de que o livro estava retido para restauração e sairia de lá depois de dez dias.
Mas moço era amigo do Secretário de Educação, a quem a mulher era subordinada. No dia seguinte, acionou o amigo para conseguir o empréstimo na biblioteca. A menina olhava-o com admiração, como se ele fosse um herói que a salvava das maldades daquela infeliz que guardava o lugar mais sagrado da cidade.
Assim, começava a grande aventura junto ao Tolstói e aos seus mujiques, nobres e cossacos da Rússia do século XIX, que enfrentaram o exército de Napoleão Bonaparte, que saiu pela Europa promovendo uma verdadeira carnificina. Desde o início, identificou-se com Natasha, em seguida Pierre, Príncipe Andrei e, mais adiante, o general Kutosov, fato que causava estranheza no moço que dizia “aquele velho turrão que não tinha grandes planos de ataque! Não, menina, por favor!”. Mas, a menina gostava da compreensão e ligação de Kutosov, com o sentimento mais íntimo das massas, do povo russo em 1812, que, na teoria de Tolstói, levou à expulsão dos franceses.
Quando chegaram os jogos de inverno, a menina e o moço já namoravam e todos sabiam. Em agosto, os pedidos de aulas particulares começaram e a menina resolveu retomar o projeto de conseguir uma máquina de escrever. Pensou em pedir para a mãe, mas sentiu pena. A mãe tinha mais um bebê, a terceira filha, totalizando quatro proles. O pai continuava pelo mundo, o que, às vezes, dava raiva e, às vezes, inveja na menina. O fato é que ela não tinha coragem de pedir uma máquina de escrever. Algo tão caro. Essa história já tinha rendido comentários na família.
Nos meses de outubro e novembro, a menina não tinha mais agenda para aulas particulares. Filhos de fazendeiros, profissionais liberais, funcionários públicos acorriam até a casa da menina porque tinha fama de ensinar bem. O moço também dava aulas particulares, mas, naquele ano, repassou seus alunos para ela. Moço bom. Ela gostava daquela cumplicidade. Daquele acordo sem falar nada. Daquele assunto deles. Ela sabia que ele estava ajudando-a mesmo depois de algumas brigas em que ela interditou o tema durante os encontros. Tinha vergonha de querer a máquina de escrever, pois isso denunciava sua ambição de ser escritora, que lhe parecia algo muito caprichoso diante de outras necessidades de sobrevivência.                                
Em dezembro, a menina já tinha parte do dinheiro para comprar a máquina de escrever. Faltava receber algumas aulas que completariam o montante. Ela ia viajar com uns tios para as festas do natal e ano novo. A mãe iria esperar o pai. O pai sempre demorava. Era um suspense quando e se chegaria para as festas. Mas, naquele ano, ele chegou no dia vinte e dois de dezembro. Quando o carro dos tios ia sair, chegaram na frente da casa dos avós os pais dos alunos que lhe deviam aulas e o seu pai. Ela recebeu o dinheiro, um bolinho de notas miúdas. Uma prima a aconselhou a deixar o dinheiro com o pai, para não arriscar perdê-lo na viagem.
Algo dentro da menina, aqueles saberes que temos das pessoas e dos fatos, que chamam de intuição, dizia para ela levar o dinheiro consigo. Mas, a vergonha de demonstrar a desconfiança do pai a fez entregar o dinheiro o qual sorriu feliz dizendo: “nossa a menina vai ficar rica! Deixe que o pai guarda pra você!”. Ela sentiu-se culpada por não confiar no pai.
O pai era viciado em jogos de azar. Ela entendeu que tinha perdido o dinheiro e todo seu esforço tinha sido em vão. Doeu saber, de novo, que não poderia contar com ele. Doeu fundo. Um filme repassou o ano difícil em sua memória. Os problemas da mãe sozinha, os irmãos, a luta para ela ler Tolstói, conseguir o dinheiro, o “apaixonamento” pelo moço, a raiva disso. E, agora, para coroar o ano de dores e pudores, o pai chega bem na hora da viagem, a prima dá um mau conselho e a menina entrega o dinheiro. Tinha razão a bibliotecária que dizia ser melhor conter a gula da menina pelos livros, ser viciado era da genética da família. A mulher sabia disso. Foi um ano de sentir vergonha. Vergonha de estar apaixonada pelo moço, de querer a máquina de escrever, de querer ser escritora, de ter entregado o dinheiro para o pai viciado e do próprio pai. Acima de tudo, vergonha de querer algo para si. 
Quando os pais chegaram na fazenda, a menina entendeu que eles estavam brigados, como sempre. A mãe a olhava com um olhar de compaixão. Ela soubera do dinheiro que o pai deveria ter guardado, mas já tinha gasto. Elas entendiam aquela falta de um homem que fosse um pai de verdade para os filhos. A menina reforçou os votos de nunca se casar na vida, nem com o moço. Decidiu que, quando voltasse, iria se afastar do moço, de qualquer moço.
Em meio às batalhas e recusas de batalhas de Kutosov, lá na Rússia de 1812, a menina travava as suas guerras semelhantes às do Pierre e de Natasha nos seus corações. Em janeiro de 1980, o verão foi chato para ela. Um primo de dezessete anos se matou com veneno de rato. Uma prima fugiu de casa para casar com um moço dez anos mais velho que ela.
No calor infernal do sofrimento geral da família, a menina decidiu fazer algo por si, vendendo a bicicleta. O moço arranjou um comprador e com preço vantajoso. A menina conseguiu o dinheiro e uma carona para ir a Londrina.  Comprou uma Remignton alaranjada. Com ela fez os trabalhos do segundo grau, escreveu peças de teatro para escola, poesias, contos. Mais adiante, escreveu os trabalhos da faculdade e uma monografia de especialização. A máquina foi sua companheira por muitos anos.
O namoro terminou antes da conclusão do Segundo Grau. Ela leu muitos e muitos livros, vício que não foi contido. Escreveu e foi feliz com as letras da máquina. Até que um dia, por julgar que não era mais menina, resolveu jogar tudo fora. A máquina e as pastas com os escritos daquela época de invencionices. Ela sabia que sentiria saudades e falta de seus pedaços. Se arrependeria dessa violência. Como não era amiga de seus saberes íntimos, mais uma vez os ignorou, assim como quando entregou o dinheiro ao pai, antes da viagem.
Com o passar do tempo, a menina virou mulher. Rompeu de vez com a menina e tentou apagar seus vestígios. Transmutou-se em uma máquina e perdeu a essência da vida criativa. A máquina ganhou vida dentro de seu ser que, na busca de diminuir a angústia das perdas, resolveu perder tudo de uma vez. Para fora, o que já existia foi condenado à morte. Para dentro, o que restou ficou condenado ao silêncio. As palavras foram interditadas no excesso de ação. Uma endometriose verborrágica começou a circular dentro do seu corpo-máquina.  

*Ileizi Fiorelli participou do Curso de Escrita Criativa

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