Um lugar no deserto (Júlia Riede)

(Rene Magritte)

Um lugar no deserto

(Júlia Riede)*


O barulho do motor de sua moto não era nada animador, provavelmente, estava em seus últimos dias. Havia mais um buraco nos joelhos de sua calça jeans, suas botas estavam surradas, e sua camiseta, outrora preta, hoje estava praticamente cinza e toda rasgada. Pelo menos, sua jaqueta de couro escondia o pior, mas não seria um agasalho suficiente para a madrugada. Os dias eram quentes e secos, porém, as noites esfriavam muito. 
Laura precisava encontrar abrigo. Um lugar para dormir e, principalmente, tomar um banho. Não lembrava da última vez que esteve limpa de verdade. Não aguentava mais a sensação de areia grudando no seu corpo, o gosto de terra na sua boca era constante. Ela tinha que andar sempre com o cabelo trançado para não acabar em um emaranhado de nós.

Alguns quilômetros adiante avistou uma casa. À primeira vista, parecia abandonada, mas, mesmo assim, Laura seguiu com cautela. Desligou a moto e seguiu a pé, atrás de arbustos ressecados e troncos de árvores mortas, o canivete firme em sua mão. Se tivesse alguém na casa, não a veria vindo. Ela chegou o mais próximo possível sem denunciar sua presença, e ficou observando a casa durante quase meia hora. Quando não sentiu movimento algum, decidiu entrar.

A casa tinha dois andares, no fundo havia uma sacada com uma porta que dava para a cozinha. Laura olhou primeiro pela janela e, não vendo ninguém, entrou por ali. A porta estava velha; seu rangido ecoou pela casa.

“Bosta!”, Laura exclamou, tentando manter sua voz baixa.

Ela entrou rapidamente e encostou-se contra a parede atrás da porta. Se alguém viesse atacá-la, esse seria o lugar estratégico para o contra-ataque. Seu coração parecia que ia saltar do seu peito. Não importava quantas vezes ela fizesse isso, ela nunca ia se acostumar a ter que lutar diariamente pela sua vida. Sobreviver sozinha nesse mundo caótico exigia sacrifícios, mas ela já havia perdido demais para desistir agora.

Passados cinco minutos, ninguém apareceu. Ela não sentia nenhuma presença. Sua respiração voltou ao normal. Se até agora ninguém apareceu é porque, provavelmente, a casa está vazia.

“Deve ter sido abandonada durante a seca”, pensou Laura. Não havia nada além de fazendas abandonadas por perto. Era difícil encontrar casas inteiras como essa. A maioria foi saqueada e o que sobrou, queimada.

Se tivesse sorte, Laura encontraria água para matar a sede. No máximo, algumas raízes que sobreviveriam a qualquer coisa, inclusive, ao apocalipse.

A porta da cozinha abria para um corredor que dava para o que um dia deve ter sido a sala de estar. No canto, um sofá todo rasgado e roído por ratos. No meio da sala, um piano empoeirado, porém intacto. Nas janelas, os resquícios do que um dia foram lindas cortinas de seda. Hoje, rasgadas e manchadas, sua cor original era impossível de reconhecer.

Laura estava esperançosamente contemplando a sobrevivência de algum colchão intacto no andar de cima quando notou as gotas de sangue no chão.

Ver sangue não é nada incomum na vida de Laura, todo lugar que se vai neste planeta correm rios de sangue, ou já correram. Porém, ver gotas de sangue vivo quando se imagina estar completamente sozinha é perturbador.

Mas ela mal teve tempo de processar esse pensamento quando foi jogada contra a parede. Sua cabeça bateu com tanta força que viu luzes. De repente, um corpo estranho a segurou, seus braços foram imobilizados e ela sentiu uma lâmina contra sua garganta.

“Quem te mandou aqui?”, ele gritou.

Ela abriu os olhos e viu um par de olhos verdes. O dono deles devia ser só alguns anos mais velho do que ela, mas, com a vida dura dos dias de hoje e a camada de sujeira era difícil ter certeza. Uma coisa era evidente, até que ele não era feio. Ela tentou lutar, inutilmente. Era óbvio que ele não só era mais forte como também tinha mais habilidade.

“Responde!”, ele gritou de novo.

“Você tá louco?”, ela berrou de volta, se arrependendo na hora. Ela se irritava facilmente, mas, talvez, fosse mais inteligente não provocar a pessoa que tinha uma faca encostada em seu pescoço.

“Se você não me responder agora quem é e quem te mandou, eu vou te mostrar o que é loucura!”

“Que tal você tirar a faca do meu pescoço, daí eu respondo o que você quiser?”, ela disse, calmamente, olhando nos seus olhos. Ela tentou decifrar o mistério que era esse garoto, o que ele pensava, o que queria, mas era inútil. Quem era essa pessoa? Ela estava perplexa.

“Que tal você responder antes que eu abra sua jugular aqui mesmo?”, ele retrucou.

Ela teve que agir rápido. “Se você abrir minha jugular, eu serei forçada a cortar fora suas joias preciosas, aí todo mundo sai perdendo.” Laura enfatizou, usando sua mão esquerda para puxar o cinto do rapaz e mostrá-lo onde ela havia posicionado seu canivete. “Pode ter certeza que eu sei usar isso, não será minha primeira vez” ela reforçou.

Então viu o rosto do homem empalidecer ao apertar o canivete contra a virilha dele. “Homens”, pensou consigo mesma, rindo. “Tão previsíveis”.

Ele largou os ombros dela e tirou a faca de seu pescoço, levantando as mãos em sinal de renúncia, e deu dois passos largos para trás, longe de seu canivete.

“Então, que tal conversarmos feito duas pessoas civilizadas?”, ele pediu.

Ela deu risada. “Como se isso ainda existisse. Mas tudo bem. O que você quer saber?”

“Quem te enviou aqui?”

“Olha, eu não sei por que tem gente atrás de você, mas eu não sou uma delas. Eu só parei aqui porque eu preciso de abrigo e de água, ponto final. Amanhã eu vou embora, e você não precisa me ver nunca mais, ok?”

“Se o que você tá dizendo é verdade, você precisa saber que não é seguro ficar perto de mim”, ele a avisou.

“Você já parou pra pensar que talvez não seja seguro pra você ficar perto de mim? Você não sabe nada a meu respeito”, ela ressaltou. Ela já havia percebido que ele tinha um pedaço de pano amarrado na coxa “E, de qualquer forma, não sou eu quem está sangrando, então, imagino que você esteja ferido e veio aqui se esconder até se recuperar”.

“É”, ele hesitou, “eu... levei um tiro... na perna”.

“Então, por que você não senta?” ela sugeriu. “Já tirou a bala? Conseguiu fechar a ferida?”

Ele a obedeceu, ainda desconfiado, mas com óbvio alívio. “Eu só consegui tirar a bala. Eu tenho uma agulha, mas estava procurando linha quando você chegou”.

“Então, fica aqui descansando que eu vou achar o necessário para costurar sua perna”.

“Ok. À propósito, meu nome é Johnny. E o seu?”

“Laura”.

Depois de uma rápida investigação, Laura decidiu que tinha ganhado na loteria. Havia muito mais naquela casa do que o esperado. Apesar de haver somente água fria, os chuveiros ainda funcionavam, ela achou um sabonete em barra intacto, e havia até alimentos enlatados! O que ela não conseguia entender era como esse paraíso estava tão intocado até hoje.

“Melhor não questionar muito”, pensou.

No lugar de linha Laura decidiu usar fio dental e achou uma garrafa de vodca para desinfetar a agulha e a ferida. Ela juntou tudo o que precisava e pôs-se a trabalhar. Johnny também ficou surpreso com suas descobertas, porém, achou que estavam desperdiçando a vodca.

“Você prefere morrer de infecção?” ela perguntou.

“Claro que não, mas que é uma pena, é!”, ele exclamou.

“Não se preocupe, vai sobrar pra beber também”, ela avisou, “É a única anestesia que você vai receber”.

“Nem me lembre”, ele reclamou.

Ela colocou o fio dental na agulha e teve que pedir pra ele abaixar as calças, senão ela teria que cortá-las, e roupa é uma raridade para conseguir hoje em dia. Ele bebeu alguns goles de vodca e quando ela o viu seminu, decidiu também tomar um gole. Disse pra si mesma que precisava acalmar os nervos, afinal, não estava acostumada a brincar de médico assim com os outros. “Uh! Expressão errada!”, pensou, se autocondenando. Não estava acostumada a tratar ferimentos de outras pessoas. Simples.

Enquanto ela costurava não conseguia deixar de reparar nas pernas musculosas do rapaz. À primeira vista, ele parecia ser magro, mas embaixo das roupas seus músculos eram bem definidos. Ela tentou concentrar-se apenas na tarefa à sua frente, mas, de repente, vinha à sua mente aqueles olhos verdes, aquela boca carnuda, o cabelo escuro todo bagunçado e espetado.

“Droga!”, ela exclamou, irritada.

“O que foi?”, ele perguntou, assustado.

“Uh? Nada não”, ela desconversou. “Já terminei. Prontinho!” Ela levantou, se afastando dele rapidamente. “Vamos comer?”

Os dois tomaram uma ducha aquela noite antes de jantar. Ele, cuidadosamente, para não desfazer os pontos. Enquanto isso, Laura guardou sua moto na garagem da casa, junto com o carro de Johnny. Ela também havia deixado sua mochila lá fora, com sua única troca de roupa limpa.

Finalmente, ela pôde lavar seu cabelo longo, e deixá-lo solto. Ele era ondulado, ou como ela preferia descrever, era bagunçado mesmo. Ela teve que penteá-lo com os dedos, pois havia perdido sua escova de cabelo há muitos anos. Aproveitou a água para lavar sua roupa suja também.

Durante o jantar de feijão enlatado à luz de velas, o que ambos consideravam um banquete, pairava um silêncio embaraçoso.  Quando Laura estava terminando sua refeição, percebeu que Johnny olhava para ela. Porém, quando ela levantou os olhos, ele desviou o olhar para o lado.

Laura começou a ficar constrangida. Não estava acostumada a ter que ficar adivinhando o que os outros estavam pensando. Será que seu cabelo estava tão feio assim? Havia anos que ela não o cortava. Quando a prioridade era sobrevivência, um corte de cabelo parecia futilidade. Porém, naquela casa deveria ter uma tesoura em algum lugar. Ela decidiu procurar no dia seguinte quando acordasse.

Na hora de dormir, Laura escolheu um quarto no andar de cima que, além de um colchão intacto, tinha uma chave na porta. Ela queria confiar em Johnny, mas isso não seria possível sem saber suas intenções. Ela dormiria mais tranquila com a porta trancada.

 Enquanto isso, Johnny preferiu dormir na sala, por questão de segurança. Laura não ia deixar de dormir em um colchão confortável só para ficar perto da porta de saída. De qualquer forma, sua intuição dizia que nada iria incomodá-los esta noite.

Quando estava quase dormindo, ela jurava que podia escutar música tocando, o som vindo das paredes da casa.
*Texto produzido durante o Curso de Escrita Criativa em 2015

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