Gravata (Victor Hugo de Araujo Barbosa)



 (imagem capturada no Google)
Gravata

Victor Hugo de Araujo Barbosa


Tem quem se pergunte qual o significado da vestimenta. Ouvi um paspalho do trabalho comentar durante o cafezinho: que maldição esse terno, não vejo a hora de tirar essa porcaria e colocar uma bermuda. Ele é um daqueles que torce para o sábado aparecer logo, dia em que ele sobe orgulhoso em sua picape e escala algum morro no meio do mato. Ora, a resposta é evidente. Uma linguagem. Nossas roupas não passam de um código. O trouxa depois se pergunta por que amarga resultados pífios. Ele não sabe se comunicar. Ele é uma linguagem falsa e truncada em si.

Hoje vamos de Windsor. Tem qualquer coisa de superior no Windsor que me faz escolhê-lo praticamente toda quinta-feira. Quinta é um dia sério de prestação de contas. O pessoal do financeiro fica vidrado em mim, acompanhando eu subir e descer com os gráficos na projeção. O chefe me elogia. Eles me invejam. Mas calma lá. Tem a admiração também, não são todos cobras. Tem respeito, acima de tudo, o que é indispensável. O Windsor é puro respeito.

Meu rosto no espelho geralmente começa sério. Olhar de quem vai colher bons resultados ao longo do dia. Olhar de quem vai bater meta. Quem sabe eu não consiga o número da assistente do oitavo andar. Ela sabe se vestir. Então eu dou uma risada. Valeu a pena os três anos de aparelho. É um sorriso que não é de propaganda, ficou propositalmente um amareladinho, que é para não falarem que eu pareço falso. Daí vem a careta. Eu encerro com a careta, porque uma dose de bom humor é importante para a manutenção do equilíbrio, do saudável equilíbrio.

A face se alonga pelo tronco, com a costura voltada para o corpo, o nó começa a ser feito com a ponta longa voltando-se por sobre a ponta fina, subindo então por dentro da sobreposição feito entre as pontas. Puxada a ponta longa, ela circunda o nó, passando novamente pelo laço, apenas para, ainda mais uma vez – deixando-se os dedos para criar o espaço –, passar pelo laço para finalizá-lo verticalmente. O mais elegante dos nós. Deixa uma sensação de integralidade e honradez que o simples e até mesmo o duplo estão longe de transmitir.

E apesar de perfeitamente executado, o nó incomodou. Um desconforto no pescoço. Muito apertado? Talvez. Gosto assim. Desatei o nó. Abri um, dois, três botões da camisa. Uma gota de suor percorreu a têmpora, atrevida. Reparei o vergão que percorria o pescoço, onde a gravata abraçava-o. Lembrancinha da luta, concluí.

Eu saía do trabalho às 20h. Alimentava-me às 21h. Às 22h estava enérgico, razão pela qual passei a acompanhar as turmas de luta. Não interessa qual. Tem sempre um engraçadinho que espera você falar o que luta para começar a criticar e falar merda. Tae kwon do é coisa de bicha. Jiu jitsu é coisa de enrustido. Capoeira é pra preto. Coisa chata. Nesse horário tinha eu e meia dúzia de gatos pingados treinando. Uma horinha de aula e a turma ia embora, decerto dormir à meia-noite. A academia fechava também essa hora, então fui ficando até apagarem as luzes, tentando dar um fim na minha pilha. Com o tempo, o Marcel foi se fazendo ficar por ali também. Não demorou até que se tornasse meu parceiro de treino. Depois que todos se iam, ficávamos por ali aprimorando os golpes.

Não foi fácil ler o Marcel num primeiro momento. Trajado para a luta ele só me passava a mensagem de um cara que queria socar algo. No fim era isso mesmo. Tinha uma raiva ali, dessas que passam por cima de qualquer convenção, de todo limite que imaginamos existir.

Você já comeu o cu de alguma mina? Ele perguntou no quinto dia em que treinamos juntos. Olhei para os lados para ver se alguém tinha ouvido a pergunta ou mesmo para me certificar de que o questionamento era para mim – o que foi meio estúpido, já que estávamos sozinhos. Cu?, indaguei. É, cu! Já, já comi sim – era mentira. Você está mentindo, ele provocou. Não respondi. Ele então voltou com sua carga de cruzados.

Eu me tranquilizava pensando no fato de que o trabalho era território livre de Marcel. Havia uma ordem nas coisas. O bom dia do porteiro, a conversinha amigável no elevador, a bronca no estagiário. O respeito. E a Cássia. A assistente do oitavo andar. Oi, ela disse. Olá, respondi. Oi com piscadinha do olho esquerdo. Ela tá querendo dar para você, o chefe disse no happy hour. Você acha? Meu pé batendo rápido embaixo da mesa e ele com a cara de sacana. Certeza, meu amigo, o departamento inteiro tá na torcida para que você descubra como ela é.

Respeito é isso: o departamento inteiro me esperando comer a Cássia. O senhor feudal da porra toda, com direito de foder a assistente de vinte e quatro anos com sardas convidativas, em primeiro lugar, antes de qualquer outro.

Uns colegas de fora me perguntam se ninguém atravessa meu caminho. Claro que sim. O escritório é o lugar da punição. Já mandei dois abusados para o segundo andar, bater carimbo. Um terceiro foi demitido. Esse terceiro usava um terno de linho bem out. Cinza claro, com uma gravata torta texturizada em xadrez. Um verdadeiro esculacho. O boçal riu de uma apresentação minha. A curva do terceiro trimestre indica uma aceleração moderada que recomenda realocação de ativos para investimento. Hihihi. Foi isso aí. Ele entendia pela intensa financeirização do setor, implantação de factoring. Um boçal. Fiquei sabendo que foi para a Bolsa, suar o sovaco brigando por ações.

Cássia, Cássia. Um sorriso, uma piscadinha. Um café sem açúcar, um almoço vegetariano discutindo o casamento da contadora. Onde e quando começamos a cópula? Existe uma relação funcional entre homem e mulher que significa a utilização do meu pênis em conjunção carnal com o canal vaginal de minha parceira, para benefício mútuo em busca do gozo compartilhado. Quando vamos alcançar esse ponto, imagino. Você tá me ouvindo? Estou sim, minha linda. Minha linda?, ela se incomoda em notar. É, você é linda. Obrigada, responde desajeitada, onde eu estava? Ah sim, o que acha de editarmos o relatório...

Horário comercial é horário da raiva, da exploração, do jugo. O pé batendo rápido embaixo da mesa. A caneta virando uma baqueta de um solo irado de bateria na mesa de compensado. A gravata alargada e o colarinho me deixando respirar. O quê? Prega essa merda, ajusta essa gravata. O que vão pensar se me pegam assim? Falta muito para as dez? Falta muito?

E aí, comeu?, o chefe pergunta baixinho, fechando a porta, em busca de um pouco de satisfação. Ela é jogo duro, mas não dou até o fim de semana para ela liberar. Ele se anima. Bom, bom, pega ela de jeito então. Vou pegar, prometo. E mais uma coisa, bota essa camisa para dentro. Sim, senhor. Ele sai e eu levanto sobressaltado, a aba direita displicente para fora da calça. Uma combinação que diz: sou desleixado, sou um trapo.

No tatame, Marcel quebra minha defesa e me imobiliza no chão. Tá com a cabeça em que lugar?, questiona, enquanto eu espalmo o chão, pedindo arrego. Tem uma mulher no trabalho: nome é Cássia. Cássia?, ele interrompe. Achei que você fosse gay. Não sou não. Que que tem a menina Cássia? Ela faz jogo duro e eu preciso comer. Então come. Não é fácil assim. Ele me soca o esterno e eu caio de joelhos. Subo o olhar: ele me contempla, vermelho e suado, me dando uns tapinhas no cabelo ensopado. É fácil sim, come a garota. Quando ele fala parece fácil mesmo.

Saio do trabalho mais cedo. Cássia aceitou um chopinho num lugar badalado qualquer. Estou de blazer aveludado e calça jeans. Um mocassim. Na cabeça, um retrô com as laterais mais curtas e o topo num topete despojado. Uma garota me metralha. Ela me deseja. Cássia está de vestido amarelo, um cinto pedrejado rodeando sua bela cintura. Ela é bela. Ela me deseja? Ela pede cerveja, eu vou de bourbon. Ela fala da mãe, a voz estridente coroada pelo burburinho ensurdecedor. Ela provavelmente menciona um tio que faleceu. A coroa da mesa 14 ri alto e me impede de ouvir. Meneio a cabeça, pesaroso, torcendo para que ela não tenha contado uma piada. Você é um bom amigo. Oi? Bom amigo!!! Desculpa, não ouvi, minha linda. Deixa pra lá.

Um cupim e um crème brulée depois, decidimos ir embora. Ela tem que estudar para o exame de direção e dar comida para o gato. Ok, respondo. Não tem problema mesmo, penso comigo. É cedo, é 21h. Dá tempo de ir na academia.

Marcel chuta um saco de areia. Saí com a Cássia, revelo. Comeu o cu dela? O que isso te interessa? Então não, ele sentencia. Ele está mais enérgico hoje, os socos saindo no vácuo, os chutes como chicotes. Você está lento. É o whisky. Então acorda, diz. Você acha que ela tá me enrolando, Marcel? Será que foi porque eu não me vesti adequadamente? Eu achei melhor um traje esporte fino, sem o rigor da gravata. Gravata?, ele pergunta, sugestivo. Eu gosto muito de gravatas, talvez uma slim fosse o caso, com um casaco azul-marinho. Marcel estava tomando água e retorna. Ele me esbofeteia. O quê? E novamente. O quê? Ele me rodeia, um raio de rápido, e então está atrás de mim. Levanto o braço direito e pego impulso para desferir uma cotovelada, mas ele se cola às minhas costas e abafa meu golpe. Consigo sentir o vapor que sai da pele dele. Seu braço direito surpreende por baixo, o esquerdo já ao lado de meu pescoço. A mão direita dele bate orgulhosa no muque do braço esquerdo, ele laceou meu corpo. Estou sem reação e sei o que vem a seguir. É o whisky, Marcel. Então acorda, diz. E ele direciona os cotovelos para o chão: é o código para perder os sentidos.

Sou içado lá do mundo dos mortos. Estou coberto com um lençol de algodão egípcio. Quantos fios, coisa fina. Estou nu. Mentira, trajo uma gravata.

Chego cedo ao trabalho. Cumpro prazos, completo procedimentos, agendo reuniões. Antes que meu chefe ensaie o bom dia despejo uma pilha de pastas na mesa dele. Bom dia, senhor, aqui estão os trabalhos. Mas era para semana que vem. Tive tempo livre, adiantei. Ok, bom trabalho. Senti que ele me daria palmadinhas se eu fosse um cachorro. Senti o dever cumprido. Hei, espera aí. O que foi, chefe? Comeu? Soube que saíram. Comi sim, ela é uma delícia, pelinhos loiros encaracolados. Não brinca? É sério, ela é docinha. Não acredito, conta mais, conta mais. Ela geme gostoso, gosta de dar de quatro, um verdadeiro vulcão, chefe. Uau. E se largou na cadeira preta macia de couro, a imaginação comendo solta.

Acordei muito eficiente esta manhã. Campeão que cumpre meta e bate recorde. Cássia manda mensagem dizendo que gostou de ter saído, pede desculpas por ter encerrado a noite mais cedo e que andou pensando e...

O que o estagiário está olhando para o meu pau? Não tem dúvida não, ele não está olhando ao redor, nem viajando à luz do dia (neste escritório especialmente projetado para receber luz ambiente e reduzir custos de energia), ele está olhando direto para o meu pênis. Que desfaçatez. Hei moleque. Oi senhor. Perdeu algo? Ele olha de cima a baixo. O que vejo ali no canto da boca dele? Um sorrisinho? Reparando bem, ele não tem nenhuma espinha no rosto, o moleque é lisinho. Nada, senhor, desculpa.

Só depois lá no banheiro reparei que a braguilha estava aberta. Falta muito para as dez?

Cheguei na academia às nove. O pé batendo rápido embaixo da embreagem. Marcel só chegou às dez. Não tem aula hoje, Marcel. Eu sei, ele responde, e me abraça. Que tá fazendo. E olho ao redor novamente, sempre com medo, principalmente da mocinha da recepção que fica zanzando. Ele me agarra a nuca. Gostei da noite ontem, pena que foi embora cedo.

Hoje estou mais afiado, adianto todos os golpes dele. Falei que ia cumprir todas as metas. Encaixo um soco na orelha e uma joelhada no baço. Pega leve, campeão, Marcel brinca. Ele parece admirar minha vontade de arrancar cada membro dele. Sou um nó cego, confuso e inquebrantável, que resiste à pressão. Ele puxa e pressiona e eu resisto.

A academia fecha à meia-noite. Meia-noite e quinze estou na casa de Marcel. Tomo um banho (ele permitiu). Saio do banheiro e ele me presenteia com um mata-leão. Ele tenta me beijar e não deixo. Beijo não. Você beijaria a Cássia?, ele questiona. Claro que sim, ela é perfeitinha. Ele finge um ciúme e me dá uma gravata frontal. Assim você não me pega, alerto. E aplico um contragolpe por baixo, pegando-o pelo joelho e o atirando para a cama.

Marcel. O que foi? Quando você olha para mim, o que você vê? O que eu te digo?

Você é como aquela gravata que me deu de presente – e ele a retira de uma gaveta –, uma peça única, cara, de bom gosto. Um tecido da mais fina qualidade. Mas uma peça que não se usa em qualquer ocasião, em qualquer lugar, com qualquer combinação. Você tem vez, hora, momento. Você é impactante e por isso não pode ser vulgarizado por aí. Você foi feito para um bom terno, não para uma camisa suada.

E enquanto vai falando, dá o nó da gravata em volta do meu pescoço. Ele quer me desconstruir. Eu deixo. Falo: Marcel, me aperta que eu gosto. Você sabe como.

Ele acelera e apanha a ponta da gravata. Com a outra mão segura o nó e o ajusta. Então puxa com tudo a ponta para si. Gosto do nó apertado. Dez, quinze, vinte, vinte e cinco segundos. Minhas extremidades vão sumindo em um formigamento eterno, a luz vai se recolhendo a um ponto ininteligível, os olhos querendo saltar. Marcel está no comando, ordenando o caos. É o saudável equilíbrio. Ele me respeita e ao mesmo tempo me despreza. Antes de tudo sumir eu jorro anarquicamente, sem destino certo, domado por aquela bela gravata de seda, que me crava a pele e a carne.

O despertador toca às 7h. O lençol de muitos fios me acaricia. Vou acordar, hoje é dia de bater meta e ser promovido. O vergão não incomoda, o colarinho é alto e a seda italiana é das mais macias, quase um carinho. Hoje é quinta-feira, dia de Windsor.

Victor Hugo de Araujo Barbosa participou do Curso de Escrita Criativa I

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