O Menino das Horas (Gabriel Faria)



(Imagem do site: http://www.lifeartworks.com/beauty-mechanisms-watches/)


O Menino das Horas

Gabriel Faria
Ao meu avô, vitimado pelo inesperado, é que dedico esse dedo de prosa.
Abenção, vô.


De descendência baiana, com os pés em Novo Horizonte, nascia um garoto cujo destino estava escrito, literalmente, nas linhas do próprio tempo. Ou nos ponteiros do tempo, melhor dizendo. Já não é possível lhes dizer, ao certo, como estava o mundo quando ele chegou, mas conta a lenda que havia um banzé grego acontecendo. Chronos devia estar assistindo ao ato lá do Olimpo e, assim, capacitou o nosso personagem com dotes estranhamente peculiares.

O nome era Nelson e ele era paciente. Muito paciente. Dizem que nem chorou quando nasceu, apenas economizou as lágrimas para uma caminhada que não seria fácil. Quem o via nos dias de hoje, antes do destino o açoitar, podia jurar que era surpreendente o modo como soube administrar os desvios da estrada. "Ele e os seis irmãos passaram fome quando crianças e até mesmo depois", foi o que fiquei sabendo de quem pôde conhecer a história mais de perto.

...

As circunstâncias me fizeram chamar o vô Nelson de Nenum. Vai saber. Mas o Nenum pegou e até a minha avó o chamava assim. Exceto quando, na grande maioria das vezes, ela o chamava, carinhosamente, de urubu...

Quando foi de certa feita, lá na juventude, vô Nenum se tornou relojoeiro. Herdara do pai as habilidades com as engrenagens; herdara da vida a capacidade de trabalhar com a pequenez. E foi assim, ponteando, que aprendeu do tempo a vantagem de andar na velocidade contrária a dos ponteiros. Passou a vida observando as horas e aprendeu com elas a caminhar num compasso mais ritmado, sem pressa e sem correria. Não cedia às pressas. Retirava-se em silêncio e ali, estivesse onde estivesse, estabelecia um território só seu, onde o tempo parecia parar com ele.

No raio dos dez últimos anos, porém, Nenum deixou nos acostamentos aquela vitalidade de menino das horas. O espírito já cansado apresentava sinais de quem, um dia, ria-se das desventuras do tempo e fazia dele o que bem entendia. A vida mansa andava mais depressa a cada ida ao médico para exames e cirurgias de urgência. Ainda que a preocupação descabelasse toda a família, Nenum ia vivendo uma simplicidade extremamente avessa a dos relógios que, outrora, lhe serviram de inspiração. Para ele, era como se nada estivesse acontecendo. Talvez, por isso, nem aconteciam.

Mas, afinal de contas, ele era o senhor do tempo! Passou a maior parte da sua vida, literalmente, com a mão nas horas e os olhos nos ponteiros. Conseguia agarrar o tempo e avançá-lo e regredi-lo sem perder a disposição e a desenvoltura. Ele só não se deixava agarrar por ele, isso nunca! Sabia muito bem o que fazer daquele que o cercava. Aproveitava o tempo como quem senta a beira do rio, estica as pernas e espera o momento certo para investir na fisgada. Infelizmente, sem muitas forças e nem muita resistência, acabou sendo fisgado por esse amigo imparcial.

Lembro-me bem do vô Nenum. Trago algumas lembranças boas e outras nem tanto. Do que me recordo, nunca mantive grandes diálogos com ele durante o tempo em que esteve vivo. As poucas conversas, entretanto, rendiam histórias com causos de indeterminadas lições. Nenum, repito, era um homem de pequenas medidas. Fracionado. Reforçava diariamente o ditado de que 'de grão em grão a galinha enche o papo'. Das ações mais corriqueiras, conseguia retirar seus momentos de prazer. Das coisas irreparáveis, tornava mais simples o reparo. E seguia lentamente como um sussurrado tic-tac.

...

Penso que certo dia, vô Nenum se cansou de espiar, cauteloso, as formas nuas de seus tempos. Assim, fechou um último relógio por volta do meio dia de um sábado qualquer. Levantou-se de sua cadeira, ajeitou pinos, roldanas, parafusos e tantas outras miudezas que se perdiam de vista em sua oficina de trabalho. Acertou, uma última vez, os relógios que há cinquenta anos dividiam sua atenção. Certo de que não voltaria jamais, fitou-lhes com uma piscadela. Despediu-se com um sorriso e desejoso de poder dar corda em si mesmo, subitamente, parou.

Gabriel Faria participou do Curso de Escrita Criativa I

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Passo a passo da escrita

Prosa : compromisso com a palavra e a escrita

Autorretrato de uma ficção (Andreza Pandulfo)