Texto - Kelly Shimohiro




O melhor lugar do mundo
  
(Kelly Shimohiro)


          Era para ser uma viagem qualquer, mas não foi assim que aconteceu.
         Saí da casa dos meus pais aborrecida, empurrando o Bruninho para dentro do carro. Ele queria, de todo jeito, ficar mais aquela noite. Ficou insistindo o dia inteiro:
         -Mãe, amanhã a gente acorda bem cedinho e vai embora! Por favor, mãe! Por favor, mãe!
       No começo achei graça. Logo ele que nem gostava mais de passar os finais de semana nos meus pais, já estava com 11 anos e queria mais é ficar com os amigos da rua jogando vídeo game. Só que ele insistiu tanto, que fui enchendo o saco.
         - Bruninho, eu já disse! Seu pai está esperando a gente em casa, vai pedir a pizza que você gosta. Chega!
         Mesmo assim, ele foi insistindo pelo caminho, só parou quando o mandei calar a boca e aumentei o som.
        Gosto de dirigir assim, com o som bem alto. Adoro Rolling Stones. 
       Em casa, tudo estava estranho quando chegamos. Os móveis estavam todos mudados. Mas será possível que é só eu sair um fim de semana para o Rafael aprontar toda essa bagunça? Eu queria tanto trocar a mesa de jantar e, há anos, ele dizia não. Agora, mudou tudo! Sofá, geladeira, a maldita mesa de jantar... E trocou tudo por um monte de cacareco! Tudo velho!
       No nosso quarto botou uma cama de solteiro e uma colcha de laçinhos cor-de-rosa! Que ridículo! Até parece a cama de quando eu era criança...
      Não sei o que me deu, mas pulei na cama, me embrulhei na colcha ridícula e dormi, pelo que parece que foram anos.
       Acordei com tanta fome, desci correndo as escadas e comi um monte de cereal colorido. Acho que comi o pote todo! Pura delícia!
        Quando fui me trocar, só encontrei meus vestidos antigos. Botei o de bolinhas azuis. De todos, o meu preferido. Então, fui procurar pelo Bruninho.
         - Bruninho! Bruninho!!
         Esse moleque nunca quer acordar no horário, me dá uma raiva!
        Fui direto para o quarto dele, mas ele não estava. Engraçado, o bobo do Rafael trocou tudo do quarto dele também e pintou as paredes de rosa. Acho que o Rafael enlouqueceu! Vou matar o Rafael quando encontrá-lo. Mas aonde será que se meteu esse cara?
        Saio pela porta da cozinha e não resisto! O meu balanço de pneu, que saudade! Balanço a manhã inteira, sem parar. Depois me jogo na grama e vejo o céu girar em cima da minha cabeça. Adoro isso! Fiz isso minha infância inteira, todos os dias.
       Entro para almoçar e minha comida predileta está em cima da mesa: batata frita com ketchup. Um prato enorme! Como tudo de uma vez.
        Eu tinha que encontrar alguém... Mas quem era mesmo? No meio da sala está o Bruninho, meu boneco preferido. Eu o amo tanto, que prometi para mim mesma que se um dia tiver um filho, vou colocar esse nome nele: Bruninho. Ah, acho tão lindo! E um dia, eu quero casar com o homem mais maravilhoso do mundo e ter um filhinho de verdade!
       Brinco a tarde inteira com o Bruninho. Adoroooo! Troco a roupa toda dele, que fica lindo de morrer! Só deixo o Bruninho para dar uma volta de bicicleta pelo quarteirão. Engraçado, não tem ninguém na rua hoje. Não me importo, sempre gostei de brincar sozinha.
        Chegando em casa, vou direto pegar o Bruninho e subo para o meu quarto. Estou tão cansada! Mas onde está a mamãe e o papai? Acho que não voltaram ainda do trabalho. Vou dormir só um pouquinho enquanto espero por eles.
         Acordo assustada no meio da noite. Sonhei que já era grande. A mamãe e o papai estavam tão velhos! Eu tinha um filhinho lindo, chamado Bruninho. A gente saiu da casa dos meus pais e estávamos indo para a nossa. Eu dirigia um carro maravilhoso, bem grandão! Mas outro carro atravessou a pista e bateu no meu. Fiquei escutando o Bruninho chorar e gritar o meu nome. Uma bagunça enorme se formou no meio da estrada. Eu parecia um fantasma, olhando tudo de cima! Credo, que pesadelo horrível! Eu morri e deixei meu filhinho lá, no meio da estrada...
         Agarro o Bruninho, meu boneco, e durmo de novo.
         Quando acordo, nem me lembro direito com o que sonhei, só sei que era de medo.
         Como um bocado de cereal colorido, boto o vestido de bolinhas azuis e vou balançar a manhã inteira. Ah, o melhor lugar do mundo! Acho que a mamãe está deixando sempre um pratão de batatas fritas para mim, antes de sair para o trabalho. Como tudo! Brinco a tarde inteira com o Bruninho e hoje, o coloco na cestinha da bicicleta para ele dar uma voltinha comigo pelo quarteirão. De novo não tem ninguém na rua. Onde será que está todo mundo?
        Meus pais não voltaram ainda do trabalho... Estou tão cansada, agarro o Bruninho e vou para o meu quarto, dormir um pouquinho, enquanto espero a mamãe e o papai voltarem.
        Acordo assustada no meio da noite. O suor pinga frio do meu rosto em pânico. Ainda ouço os gritos de dor e o barulho do pneu queimando no asfalto. A escuridão tomando tudo. Sonhei de novo aquele sonho feio. Eu já era grande. A mamãe e o papai estavam tão velhos! Eu tinha um filhinho lindo, chamado Bruninho. A gente saiu da casa dos meus pais e estávamos indo para a nossa. Eu dirigia um carro maravilhoso, bem grandão! Mas outro carro atravessou a pista e bateu no meu. Rodamos duas ou três vezes. Depois, o aço entrando. Meu peito sufocando. Tudo escuro e um silêncio... De repente, muitas luzes piscando e gente falando, braços me tocando. No fundo, escuto o Bruninho chorar baixinho e chamar por mim. Uma bagunça enorme tinha se formado no meio da estrada. Eu parecia um fantasma, olhando tudo de cima! Credo, que pesadelo horrível! Eu morta e meu filhinho lá, no meio da estrada, chorando perdido, para sempre sozinho..
         Agarro o Bruninho, meu boneco, e durmo de novo.
         Quando acordo, nem me lembro direito com o que sonhei, só sei que era de medo.
        Corro para a cozinha e como um bocado de cereal colorido, boto o vestido de bolinhas azuis e vou balançar a manhã inteira. Ah, o melhor lugar do mundo!

Comentários

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  2. Uma história em dois tempos, dois planos, curta e direta, bela e sombria, na verdade, arrepiante. a vida com seu mistério e a fantasia da infância como um lugar/tempo de segurança e beleza sendo ratificada (o cereal, o vestido de bolinhas azuis, o balanço) e desmentida (afinal, para o Bruninho, no futuro, a infância não será essa maravilha.) Parabéns, Kelly!

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