Texto - Domingos Tortato
(Domingos Tortato)
De
previsível secura na boca se apressou em beber água. Saiu por trás do colega que
discursava, abaixou-se quando cruzou a projeção da imagem e foi parar no outro
canto da sala, onde estava sua garrafa de água junto à mochila. Seria a primeira
apresentação em seminário da última faculdade que se dispôs a fazer. Não
acreditava muito em vocação, tinha mesmo simpatia pelo poder das escolhas.
Levava o corrente curso como mais uma tentativa, uma escolha de prazo
indeterminado. E, naturalmente, estranhou a desidratação em contraste com sua
tranquilidade.
Num
súbito, era sua vez. Mal terminara o primeiro parágrafo do seu texto quando
sentiu uma onda de calor na testa, uma palpitação sem nexo. O frio do inverno
transformara-se num verão de rachar coco, latejavam-lhe as orelhas, descascava
seu couro cabeludo, as mãos frenéticas, as pernas anestesiadas e um suor gelado
que lhe descia pelas têmporas, enquanto enxugava a testa e levantava as mangas
da blusa. Percebeu, numa fagulha de luz,
que segurava uma folha, olhou num movimento acintoso de pescoço e nada enxergou
direito, apenas um embaralhar de frases soltas e móveis, uma multidão de
palavras se alvoroçando num fundo branco. Vislumbrou no mesmo instante a
brancura do seu cérebro, a inédita secura de ideias, e lamentou que se dariam
longos e execráveis minutos.
Taquicardíaco
e sem orientação, ele ergueu os olhos depois da primeira olhada no papel de
anotações. Foi quando todos à sua frente foram se transformando em comportados
e desnudos demônios, cada qual com seus enxofres vistosos, seus chifres de toda
forma e tamanho, seus tridentes em descanso, ora no chão ao lado das carteiras
e ora de pé a servir de apoio para todos aqueles braços fervorosos de demônios.
O maior deles ― o professor de cabelos grisalhos e andar pomposo ― jazia
analítico no fundo da sala meio à esquerda e sem companhia, a carteira
encostada à parede e os dois pés fixos no chão como pilares. Fingia que não,
mas aquele enorme lúcifer de distinto olhar era quem mais lhe depositava o
julgamento taxativo de juiz do mal, de procurador de sua mais recôndita
vergonha... Mas eram seres incríveis em sua serenidade, em suas posturas
acadêmicas; um deles até dormia, cansado pelo dia repleto de “demoniências”,
mas o fazia com elegância e discrição.
Quando,
enfim, conseguiu engolir a saliva pouca que se solidificava na boca numa pausa
eterna de poucos segundos, sentiu arejar as ideias, a respiração descerrando-se
num alívio paradisíaco. Seguiu uma frase e meia até se enrolar novamente, suas
palavras apostavam corrida umas com as outras, exasperadas, sua palpitação
retomava o ritmo alucinante, a boca seca, o ar faltando. Não enxergava o menor
plano de sua memória, não havia ideia de quanto tempo, de quantas gaguejadas,
de quantas mãos na testa, coceiras por todo o corpo numa agonia andante; havia
desistido de recorrer à folha de anotações que só o tornava mais perdido, como
um cego a consultar uma bússola quebrada.
Não pode
deixar de olhar para toda a extensão `a sua frente, era fascinante, era a
dialética absurda de querer sair correndo se pudesse e, ao mesmo tempo, querer
ficar ali, contemplando aquela bizarrice projetada pelo seu acesso. Tal a sua
entrega em admirar aquela beleza dos infernos que os demônios se deram a
responder-lhe as expressões ― todas polidas e didáticas ― com rostos complacentes
e até incentivadores: as sobrancelhas levemente erguidas, olhos com impulsão de
brilho, a boca apertada num esboço de um sorriso amigo.
Ouviu a
porta ao seu lado abrir-se, queria que fosse o papa, não viu quem era, era um
colega qualquer, outro demônio, retomou sua gagueira, seu discurso embolado.
Proferiu uma dezena de frases em menos de dez segundos, todas sobrepostas e incompreensíveis.
Aos demônios, até então indiferentes e dispersos, restaurou-se uma curiosidade.
Até o mais sonolento deles, o que dormia placidamente, acordou e mirou seus
olhos de demônio questionador. Em poucos segundos todos apontaram seus chifres
para o teto e compreenderam que ele os enxergava como realmente eram, como
demônios visíveis que estavam. Houve somente um momento de hesitação, um
princípio de constrangimento, pois não era hábito saber que eram vistos, mas
diante da cena de discurso caótico e raciocínio ininteligível, tudo se
transformou num semblante rubro de simples prazer sádico. Assim se conservaram,
lacônicos e maléficos, mas ainda estáticos a apoiados num corpo de exemplar
rigidez e vigor. E ele não desviou o olhar uma só vez.
Ao fim,
repetira palavras uma centena de vezes sem uma só respiração voluntária, com
toda a pressa do mundo, com toda a espessa névoa por toda a vista. Terminando a
apresentação e, como não havia cadeiras livres, recolheu-se no único lugar vago
da sala: o espaço que ficava entre a porta de saída e o lixo. Após a avaliação
e a ordem de sentar do professor já sem chifres, flexionou os joelhos cansados
e sentou-se ali mesmo, encostado à parede já quente e fedida pelo enxofre, no
único lugar livre, na altura inferior. O único a se sentar no chão. Ali ainda
frequentaria os piores momentos da recente cena, sem que cessasse por completo
a brancura do cérebro e a secura da boca.
Chegou em
casa sem fome, sem sede e sem mesmo a vontade de um cigarro. Encontrou a mesa repleta
de comidas de toda sorte: bolo de cenoura com chocolate, pão francês, cuscuz, mandioca cozida, macarrão de
abobrinha, bolachas e ainda mais. Sem se ver e sem ser visto, misturava tudo na
boca como se vindo do maior jejum do mundo, como se a última comida do mundo
ali estivesse. Bebia vinho e suco de maracujá para fazer descer a massa sólida
que lhe grudava os dentes, comia, mesmo em pé, comia e bebia até que pensou em
alto volume: "Chega, vou fazer um prato". Engoliu o que ainda
mastigava enquanto servia-se num prato com arroz, feijão, carne com molho,
chuchu, mais cuscuz, farinha de mandioca e uma porção raivosa de pimenta. Tudo
devidamente esquentado num micro-ondas de segundos cancerígenos, tudo
sistematicamente posto e ocupante no prato, para a boca e todo o sistema
digestivo, para fora de si depois do cigarro e de algumas horas, num súbito de
lembrança, calor e pesadelo que o arrancou do sono perturbado.
Não foi
visto por longas semanas. Sua ausência foi notada principalmente nos dias
seguintes, nas imediações do episódio que virara a anedota da turma. Ouviu-se que
adentrara um mosteiro beneditino, que dera a beber por bares da periferia; um
jurava tê-lo visto numa pelada domingueira, outro num ônibus lotado enxugando o
suor da testa. Voltou num dia incerto em que não havia nada de especial a não
ser um cansaço generalizado. Não trouxe bagagem que não fosse uma mochila com
suas coisas habituais, e trouxe no rosto a demoníaca expressão de quem havia
rodado o mundo.
Gostei muito do clima de loucura... e não é que isso acontece mesmo! Os demônios e tudo mais.
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