Dois Textos de Cleide Barbosa





 
Óculos de menina
 Sete anos, cabelos castanhos lisos e curtinhos, olhos meigos por baixo da franja que cobre parte da testa, um olhar meio tímido como um gato escondido embaixo da poltrona, mas que é dono de si e está pronto para se defender. Assim ela inicia sua jornada de estudante, saindo de casa arrumadinha, com guarda pó branco de tricoline, as pregas impecavelmente passadas pela mãe.
O cheirinho de Omo e a maciez do tecido de algodão, reconfortam-na e dão a certeza de que é bem cuidada e pode seguir em frente, andando rumo ao colégio, ao futuro. Na mão direita segura a maleta de couro com cadernos, estojo de lápis e a cartilha Caminho Suave. A alça da lancheira cruza o ombro até a cintura. O sanduíche de sardinha embrulhado no guardanapo e garrafinha com suco de laranja vão chacoalhando e batendo no seu quadril.
Sobe a rua, passa pela da casa da esquina cujo muro separa a calçada da sebe verde escuro que ora mostra, ora encobre, a casa de madeira mal cuidada. Sente medo. Os primos falam que ali mora um louco. E se ele aparecer repentinamente no alpendre? Sente um sobressalto.
Apressa o passo, atravessa a rua quase vazia, procura a visão da casa em frente. É bonita, parece um pequeno castelo. Pintada de amarelo claro, tem na fachada uma parede arredondada formando uma pequena torre com telhado cônico, janela pequena com grade branca, no parapeito vasinhos coloridos por gerânios rosa claro e púrpura. A casa parece ilustração de livro de estórias de fadas e princesas. Fantasia e medo, um em frente ao outro, apenas a rua os separa.
Mais duas quadras e chega ao portão da escola, já ouve o barulho dos alunos brincando no pátio, enquanto esperam o sinal para formar filas e depois entrar para as salas de aulas.
Deixa seus pertences no banco pintado de cal, ainda branco e limpo. Vai brincar com a colega da sala que vê no meio da roda. Loira, cabelos caídos pelos ombros, os cachos pulam conforme saltita pelas casas da amarelinha. Ela usa óculos, mas seus olhos estão fechados. Pula mais uma casa, pára se equilibrando num pé só e pergunta às amigas que podem ver as linhas desenhadas com giz branco no chão da quadra, pedindo uma deixa para seguir adiante:
- Pisei?
As outras meninas, em volta, fazem coro respondendo:
- Não pisou!
Toca o sinal, cessa a brincadeira com um ahhhh! E todas saem correndo para pegar suas pastas e lancheiras amontoadas no banco, uma confusão de braços e mãos se estendendo, cada uma querendo alcançar primeiro que as outras. As duas se esbarram, a amiga loira desequilibra, embora agora esteja de olhos bem abertos e veja tudo claramente. Os óculos pulam do rosto e ficam pendurados num cacho do cabelo, mas o peso das grossas lentes desfaz o rolo de fios loiros que não o sustentam, e cai no cimento. De ponta. Quebra uma das lentes. Ela olha aborrecida:
- Olha o que você fez!, acusa.
Ela recua assustada.
- Não fui eu! Não tive culpa, você que me empurrou porque queria passar na minha frente!      
A professora se aproxima e chama para formarem a fila. Todos obedecem e se posicionam. Ordem perfeita, duas filas - uma de meninas, outra de meninos. Menores na frente, mais altos atrás. Ela está no meio da fila, aliviada, pois a outra é mais alta e fica na ponta final. Entre elas e o incidente, outras meninas criam a distância necessária para esquecer.
Todos entram para a sala. Começa a aula.
- Fizeram a tarefa de ontem? Ponham o caderno na carteira, vou passar recolhendo.
Fazem silêncio. A aula segue, a professora ensina. Ensaiam um canto para a apresentação do Dia das Mães. Recreio, mais brincadeiras, engole o lanche. Sinal, sala de novo, números na lousa, acima um varal de cartazes cada um com uma letra e um desenho. O a tem o corpo de uma abelha por trás. O b coincide com o contorno da barriga do bebê, em pé, numa bacia, a babá o segura, enquanto lhe dá o banho. Avista o mundo das letras por belas imagens e significados conhecidos e familiares.
- Agora, atenção: peguem o caderno de caligrafia na pasta e abram na primeira página. Copiem, na primeira linha de cima, as palavras que vou escrever aqui no quadro. Assim, desenhem as letras beeem redondinhas, sem tirar o lápis do papel, encostando a letra na linha de cima e de baixoooo. Com capricho para ficar com letra beeem bonita. Terminem em casa como tarefa, copiando cada palavra até o fim da folha. Tragam amanhã, vou corrigir.
Toca o sinal do fim da aula, lá fora já vai caindo o sol. É começo do inverno. Saem todos embolados pela pequena porta. Os meninos disparam pelo corredor. Fazem muita algazarra. Ela sai no meio da turma, um pouco confusa, empurrada pela onda de crianças. Quando vê já está no pátio e a irmã mais velha a chama do portão. De volta para casa, fazem o caminho da quitanda do japonês para comprar as batatas que a mãe pediu.
- Vai ter sopa na janta, a irmã avisa, segurando a sua mão, afinal, é maior do que ela.
Enquanto a irmã escolhe, fica olhando a vitrine do balcão de madeira, cheia de doces: pé de moleque, abóbora e batata-doce em forma de coração, quadrados de paçoca embrulhados em  papel branco com um coração vermelho, pirulitos em forma de guarda-chuva, maria-mole coberta de coco ralado num saquinho fechado por um anel dourado com pedra vermelha que brilha como rubi. Fica encantada. Não faz questão do doce, embora goste muito de morder aquela massa molinha e grudenta, enchendo a boca com gosto. Mas o anel, é lindo! Viu um parecido no dedo da colega loira da escola.
Lembra-se dos óculos quebrado... será que conta para mãe? Acha melhor não, ela vai querer ir na escola conversar com a professora, tem vergonha.
Pede para a irmã comprar:
- Só uma, só uma... deixo para comer depois da janta, prometo.
A irmã compra, assim tem desculpa para levar também um chicletes de bola Ping-Pong tutti-frutti. Assina a caderneta com o nome do pai. Seguem para casa, o pacote com a irmã. Ela está ansiosa para colocar o anel no dedo.
Dia seguinte, manhã com sol e um ventinho mais frio que vem do quintal. Acorda com o piado de pardais na janela. Ui! Que preguiça, a cama está tão quentinha. A fome faz a barriga roncar. Levanta e senta na cama. A mãe chama na cozinha. Vai lavar o rosto e olha satisfeita o anel no dedo. Ainda de pijama de flanela, senta-se à mesa para tomar o leite quentinho na caneca que a mãe lhe estende, come pão com manteiga, e fica catando os pedaços de casquinha dura que caem na toalha branca. Gosta muito de ver o sol entrando pela porta da cozinha, fazendo uma lista de luz no chão de vermelhão encerado. A lista fica mais clara quando sobe na toalha e segue até ela, por cima da mesa. Ajeita a pedra do anel para alcançar o sol e fica olhando a mancha de luz vermelha na toalha. Levanta o dedo, a mancha cresce, comprida e fica mais clara, quase cor de rosa. Abaixa, a mancha encolhe e fica mais vermelha, cor da pedra. Ilumina o pão, a manteiga agora parece geleia de morango. A mãe percebe a distração.
- Filha, termina logo esse leite, arruma sua cama, se troca e vai fazer sua tarefa. Quero ver seu caderno, muito capricho, hein?
Caderno lembra escola, escola lembra os óculos da menina loira, com a lente quebrada... Friozinho na barriga. Melhor ser boa menina e não aborrecer a mãe. Aquiesce com um hum, hum, e vai para o quarto fazer o que a mãe mandou.
Estica os lençóis conforme o alcance de seus braços, sobe de joelhos sobre a cama para estender até o outro canto da parede. Faz a tarefa. Brinca um pouco com o amigo e vizinho que sempre aparece no muro e a chama. Às vezes brigam também, os dois querem mandar nas brincadeiras. Brigam para brincar, brincam de brigar, mas continuam sempre juntos, brincando.
Resolvem fazer uma fazendinha embaixo da jabuticabeira, ajeitam as folhas caídas para parecer plantação, espetam uns gravetos como cerca ao lado da estrada de pedrinhas cuidadosamente arrumadas por ela, uma por uma. O amigo insiste em fazer uma casa, mas não tem telhado porque as folhas maiores são tortas e não param direito em cima da pedra. Corre até a cozinha, olha a fruteira em cima da mesa. Apanha duas batatas que sobraram de ontem e o chuchu, murcho e de tão esquecido já começa a brotar. Ótimo, o broto parece o rabo de um boi, os fósforos serão as pernas e os chifres. Volta para o amigo:
- Agora já temos um boi para por no pasto e porcos para o cercado com lama.
A mãe chama. Vê a sujeira e a manda entrar para se lavar.
- O almoço está quase pronto! Já, já será hora de ir para a escola. Se apressa filha, o Junior volta amanhã e vocês brincam mais.
Pronta, arrumadinha no guarda pó branco, pasta com cadernos, lancheira com a merenda, vai para a escola, mas toma o cuidado de ir pelo outro lado da rua para não passar pelo muro da casa do louco...
No pátio, a fila já está se formando. Toma seu lugar. Entram na sala. A professora pede:
- Silêêêncio! Sentem-se. Antes de começar a aula, tenho um assunto muito sério para tratar com vocês. A mãe da Júlia veio conversar comigo sobre os óculos dela que foi derrubado por alguém dessa turma.
O frio na barriga volta. As mãos começam molhar de suor. Esfrega no guarda pó, por baixo da carteira para enxugar. A professora continua.
- Olha gente, isso é muiiiito sério mesmo. Pior do que ter estragado os óculos da amiga, é ficar quieto, não falar quem foi, não explicar o que aconteceu, não pedir desculpas e ...
Vai afundando mais na cadeira. Sente as bochechas quentes. Cria coragem, fica de pé e vai começar a falar, explicando que foi sem querer, que esbarraram uma na outra na pressa de pegar o material e entrar na fila, que, que... Ela engasga.
A porta da sala se abre repentinamente. Entra a Diretora. Todos se levantam.
- Boa tarde alunos!
- Boa tarde, Diretooora! Respondem todos em coro musicado.
- Podem sentar. Trouxe para vocês esses convites para a Festa das Mães. Pintem o coração com lápis vermelho, sem borrar, a professora vai ensinar. Levem para casa. Cada um entregue o seu coração para sua mãe e diga que é um convite especial, feito com carinho para elas que são especiais! A festa será bem bonita. Sei que já estão ensaiando um canto lindo. Haverá apresentação de dança da outra turma e um teatrinho com o pessoal do quarto ano. Terá sorteio de caixas com surpresas para as mamães. Será divertido e tenho certeza que elas vão adorar! Não esqueçam de entregar, falem que a Diretora quer que venham tooodas. Agora vou saindo e Dona Emília vai mostrar como vão pintar o coração. Caprichem para a mamãe ficar feliz. Façam bem bonito!
Tumulto, gente saindo do lugar para emprestar lápis de cor do amigo. Um outro deixa cair o cartão no chão e agora limpa no guarda pó. A japonesa da sua frente fala:
- Minha mãe está muito doente, nem levanta da cama. Posso trazer minha vó no lugar dela?
Ela sorri, meio sem graça, meio aliviada. Ufa! Ninguém mais está olhando para ela. Abaixa-se, pega o convite e o estojo de lápis de cor, colore de vermelho o coração. Cor do rubi de seu lindo anel, do chão vermelhão brilhante e encerado da cozinha de sua mãe, do coração impresso na embalagem da paçoca, cor de suas bochechas envergonhadas, do sangue que fez seu coração bater forte, bem forte, quando começou a falar, em pé, na sala. Vermelho, cor forte, cor viva. Cor da vida.



(Fonte: FollowTheColours Ilustrações)


Herança
(Cleide Barbosa) 

   
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&   Desmancho    &   desfaço   &    desfaleço    &    esfacelo   &     despetalo    &     desato   

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A toalha de lavabo amarela que minha mãe me presenteou no Natal de 90, ficou manchada pelo uso. O tecido é uma toalha qualquer comprada em uma loja qualquer. A cor foi escolhida por ela com cuidado para combinar com os azulejos do lavabo de nossa antiga casa. Nas extremidades, costurou um lindo barrado crochetado por ela mesma, com agulha fina e linha no tom exato para combinar com a cor da toalha que era felpuda, na época. Agora a toalha está desgastada pelo uso e quase perdeu a cor e a felpa, porém o crochê está perfeito, como novo, pontos uniformes e firmes. Mostram o capricho de minha mãe em sua obra.

Vou desfazer-me da toalha há tempos em desuso e não quero descartar o barrado de crochê. Resolvo despregá-lo do pano para guardar como lembrança de minha mãe.

A costura que uniu toalha e crochê está perfeita e os pontos são tão pequenos que uso uma tesourinha de pontas finas. E desmancho, ponto por ponto para não danificar seu caprichoso trabalho. E penso, me colocando na hora e lugar em que ela teceu aqueles pontos: que pensamentos pensava, que sentimentos sentia, o que povoava aquele seu dia?

Desato o nó, que ela deu bem dado para se assegurar que seu trabalho não desmanchasse, o qual resistiu ao tempo e ao uso. Teria a preocupação de deixar um legado que marcasse a existência de sua pessoa?

Retiro o crochê. Acondiciono com capricho numa caixa.  Guardo seu trabalho para preservar sua memória. Perpetuo seu legado sendo eu própria uma extensão e continuidade do esmero de minha mãe. Esse mesmo que com certeza já está entranhado em meus próprios filhos.


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&    Recomponho  &        refaço       &      revivo      &      restauro     &       junto       &      ato      &
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Comentários

  1. Lindos textos, quanta sensibilidade! Parece que é com a gente...

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  2. Otimos.!! Fazem a gente viajar dentro do texto e viver a historia narrada. Amei

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