Crônica




Doce de limão
Cleide Barbosa de Andrade

Esta é uma boa receita de como fabricar uma compota com limões rosa, que são bem ácidos, de tal forma que se consiga com sucesso, tornar doce o paladar daquilo que é em essência azedo, conservando aroma, sabor e cor. Os limões rosa podem também ser chamados de cravo, francês, vinagre, conforme o costume ou região do país.
Mas também pode ser lida como uma receita sugestiva para superar os azedumes da vida, tornando os dias mais agradáveis, porque guarda algumas similaridades entre a conduta recomendada no preparo dos ingredientes e as atitudes que podemos adotar na vida.
Modo de fazer: apanhar no limoeiro os limões. É importante lidar logo com eles, quanto mais tempo passa, mais difícil ficará, pois logo eles murcham e apodrecem. É também assim com os problemas da vida, quanto mais se procrastina a solução, mais complicado fica.
Que sejam bem maduros, os limões, claro! Apanhar aqueles bem graúdos, não desprezar os cascudos, para estes também se dá um jeito e, se não der, ajeitado está. Sempre se pode usar um limão azedo para temperar salada, a vida, clarear a fronha pingando suco nas manchas e deixando ao sol, clarear as ideias...
Inevitável se ferir nos espinhos dos galhos do limoeiro: deixar sangrar, esperar estancar, aceitar a dor. Porém, não deixar que vire autocomiseração, depois de expressada a dor, colocar logo um curativo e mãos à obra: o que se quer é fazer um doce dos limões.
São muitos os limões e receia não dar conta? Na vida também são muitos os dissabores, as perdas, as dores, os desamores.
Não se acanhar se for este o caso, pedir ajuda para alguém que tenha bom coração, mãos firmes, delicadeza e olhos atentos. Melhor ainda se for bem instruído na vida e na justiça. Que tenha paciência de ouvir o silêncio e também ao outro. Assim como os ingredientes e utensílios devem ser bem escolhidos na cozinha, também o devemos fazer com os parceiros da vida.
Recolhidos à própria casa, no silêncio, polir os limões, um a um, com paciência e lixa fina. Muita atenção e cuidado para não machucar a casca dos limões e nem ferir você mesmo ainda mais. Mas, caso aconteça, aprender com o erro, ensaiar outra forma de segurar e polir limões.
Deixar exalar o perfume acre da fruta de tal forma que impregne toda a casa, toda a cozinha. Repele moscas e purifica o ar do ambiente. Inspirar, suspirar se for necessário.
Romper os olhinhos da casca, sem força bruta e deixar verter o sumo, lá do fundo das vesículas, cujo óleo amarelo (cor do desespero) queima a pele com a luz do dia e o sol incidente. Essa substância amarga e perigosa, que quando seca é pegajosa como uma tintura, colore as unhas e as palmas das mãos. Fica entranhada na memória e na pele se não se lavar bem com água e perdão, digo, água e sabão. E assim, a amargura da casca dos limões e as dores da vida, podem subsistir ainda amanhã e depois, na pele ou no coração.
Suportar nas costas e nas pernas, o peso das horas em frente à pia, das demoras do preparo, ou do reparo da alma, se para isso estiver usando esta receita. Não desistir: insistir. Ir até o final para não desperdiçar o penoso labor até agora aplicado.
Cortar a casca do limão em quatro partes, sem romper com tudo, deixar um ponto ligando as secções, depois será mais prático acondicionar o doce no pote (ou acomodar a vida). O corte terá maior acerto se usar uma faca bem afiada na pedra dura e fria, dos dias, da vida. Isto é sabedoria. Não se diz que a palavra sábia é cortante porque vai ao ponto de forma penetrante e expõe a verdade?
Desprezar os gomos cheios do suco amarelo e azedo e colocar apenas as cascas de molho na água fria, trocando várias vezes até ficar sem amargor. Retirar das entranhas a acidez, o azedume, a agressividade e o rancor. Encharcar-se com pensamentos e sentimentos bons.
Preparar a calda doce em fogo brando. Medir o açúcar e a água, em quantidades bem equilibradas.  Evitar que a calda fique aguada e insípida, mas também não exagerar no ponto de doce, que provoca logo enjoo ao degustar o doce como também pode enjoar o convívio com pessoa que exagera nos agrados e mesuras.
Numa quantidade bem dosada, a calda deve ser suficiente para cobrir e envolver todas as cascas, docemente, preenchendo todos os vazios, da panela e da mente. Levar ao fogo e apurar bem, até recobrir possível insipidez e falta de brilho nas cascas, que deverão conservar um fundo meio azedinho, que é para não cair no fastio da doçura. Assim, ao saborear o doce volta na memória discretamente o sabor azedo, e essa lembrança por si só já é bastante para encher a boca de saliva, que é sinal do desejo que foi despertado.
Na vida, os dissabores e tristezas servem bem ao aprendizado e maturidade e a leve lembrança desses fatos serve para melhor se apreciar as bondades do momento presente. E o desejo, ah! este  é a força vital para se reinventar.
Com certeza, se o leitor seguir com fidelidade esta receita obterá um doce bem gostoso. Escrevo-a com larga experiência de quem a faz quase todos os invernos, quando a produção da fruta cítrica é abundante e meu sobrinho me traz uma sacola de limões lá da fazenda, para que eu faça a compota e depois lhe dê um vidro cheio do doce. Em casa, ao redor da mesa, já vi brotar muitos sorrisos doces nos lábios dos que degustam a sobremesa de limão rosa, que antes era azedo e tinha a casca amarga.
Já para a receita de superação das amarguras da vida, não dou garantia, porque mudam muito as pessoas e suas dores, suas sensibilidades e capacidade de superação. Entretanto, as virtudes que aqui citei, servem bem para serem usadas na cozinha e na vida: presteza, flexibilidade, aceitação, humildade, paciência, perdão, respeito, abertura ao novo, equilíbrio, temperança, persistência, bom gosto e sabedoria.

Comentários

  1. Parabéns pela crônica, uma visão comparativa perfeita!
    Mas sem dúvidas um doce que pode melhorar o amargo da vida de muitas pessoas e ao mesmo tempo uma receita que se seguida ao pé da letra, poderia fazer os menos experientes (e porque não dizer os mais), ter uma vida quase inteira com menos dores e que se eventualmente as tiver, colocando um cravo da índia pode muito bem tirar a dor por um bom tempo.....
    O doce pronto....hummm.....uma delícia e para dar um toque de sabor especial a uma taça de sorvete por exemplo, nem me fale! Vida muito doce também não presta, portanto o azedinho é que a faz mais com mais desafios todos os dias.......... imagina ter só o bom? Não teríamos noção de que o seria se não tivesse as provações. Bom apetite!

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  2. Cleide, adorei!!!Continue, a escrita nos move de azedumes inesperados. Viva!!!

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