À nossa filha (Fischer Seixas)

Hoje publicamos mais um texto produzido durante o Curso de Redação Criativa, ministrado pela escritora Karen Debértolis, no Espaço Colaborativo Junt.us. O destaque é para o conto À nossa filha, do escritor, poeta e compositor Fischer Seixas.


À NOSSA FILHA


Não consigo dormir. Mais uma vez, não consigo dormir pelo terceiro dia seguido. Pelo menos hoje é domingo. São quatro e quinze da manhã. Luciano é uma pedra. Como ele mesmo gosta de brincar é "um bom de cama: deita e dorme!”. Acho graça de 30% de suas piadas, um ponto contra. Antecipo a hora do café que, antes de tudo, é um ritual que me organiza. Deixei água para ferver no fogão. Deixei o computador hibernando prevendo que não dormiria, prevendo que sairia mais uma vez pela escrita.

Já era tempo, desde antes de nossa gravidez, supunha estar num processo de cura constante e ininterrupto, acreditava que tudo já estava consumado e que eu mesma era uma “outra melhor”, melhor para eu mesma. Não devo superestimar esta escrita como um retrocesso. Escrever tem um quê de prazer, tem um quê de lazer e um quê de gozo estético, de arte, e, portanto, me retira de um certo fatalismo dos dias ordinários.

Desta vez, não quero escrever por escrever, quero levar boas novas à minha mãe, quero deixar um registro à Clara, minha filha. Sim, é menina, chegamos à décima quinta semana e ontem, sábado de manhã, fizemos um novo ultrassom e a obstetra bateu o martelo: “É uma menina, vocês já escolheram o nome?”. Silêncio… Na clínica, quatro pais entre quatro paredes, ninguém quis ser grosseiro num momento tão especial. A mim, entretanto, Clara responde à toda expectativa e a todos os anseios. Clara esclarece e nos reconcilia. E num outro sentido abre caminho, dá passagem à filha que virá ao mundo.

É Clara, para que complicar? Clara como deveria ser a vida na sua plenitude, uma verdade íntima e como, de fato, foi sobre vários aspectos a nossa caminhada até este ponto: uma filha à quatro.

Grávida, Joana está reluzente. Altivez de uma chefe de tribo, seios fartos, sorri com os olhos a todo instante. Talvez, por isso, eu escreva agora: confesso que senti ciúmes, queria eu estar de posse de Clara, dormir com ela, sentir sua preguiça, sua inquietude, levar seus pontapés e mesmo ser seu invólucro, o seu embrulho de presente, conduzir olhares, toques, curiosidades, ser a sua porta-voz, enfim, dar as boas-vindas e as boas novas...

Agora sim! Volto às antigas questões, não seria eu mesma se tudo fosse tão claro. Neste ponto, eu dou graças a Deus por não deixar de antemão a minha herança genética à Clara. Talvez, por isso, escreva à minha mãe, sei que ela precisará deste aporte e, mais do que isso, de um tempo: “Como assim uma filha à quatro?”.

À mãe quero consolar e dar explicações pelo que nunca consegui ser e dar testemunho de minha felicidade e afirmar, por fim, a minha escolha. À filha quero deixar meu gesto de carinho e dizer que, de gesto em gesto, também gestei uma filha. Não quero fazer, entretanto, desta última fala o meu apelo miserável, o apelo de “por favor, não me abandones, eu sou tua mãe!”. De certo, devo editar este texto e tudo o que for desabafo!

Agora…Pior do que sentir ciúmes de Joana, é saber que Andréa percebeu tudo, ou ainda, percebeu o meu desconforto mal disfarçado. Quem eu era ali? A mais coadjuvante dos quatro, a menos mãe... De certo devo editá-lo!

Desejo falar somente de tudo o que foi anterior e especial. De como nós quatro nos conhecemos à época do encerramento do Festival Peroba Rosa no Zerão, do encantamento de conhecer Andréa e Joana e de meu processo de cura e reconciliação com a vida…Parênteses: Luciano acordou furioso, esqueci a água do café, o cabo da chaleira derreteu e agora o apartamento inteiro está cheirando a plástico queimado; levei um pito homérico! Ainda bem que moramos num apartamento! Luciano se policia para baixar o seu tom de voz... Às vezes, ele pede para ser grosso e entra na fila duas vezes. Fecha parênteses.

...

Desde o final de meu primeiro casamento, algumas prioridades mudaram em minha vida, não exatamente isto. Tenho as mesmas fantasias de envelhecer ao lado de meu marido, de ter um filho e viver a minha família, mais ou menos como supus que estes seriam os ideais e as fantasias de minha mãe. Pois bem…“Muitas águas rolaram”, como diria a canção. O Otávio não foi exatamente um príncipe encantado. Aliás,não tinha nada de épico, pelo contrário, passivo, acomodado, ficava sempre esperando por mim, ou por um tempo que não era o dele. Talvez, para não assumir a responsabilidade das coisas ou para não se haver com o seu próprio vazio. Reconheço, agora, que a passividade de Otávio me forçou duramente a ter mais atitude na vida. De minha parte, eu que sempre tive ojeriza à ideia de ser traída, por fim, traí. Eu não faria isso se as coisas não estivessem chegado ao ponto em que chegaram, não é de meu feitio - dizem que quem trai sempre tem uma desculpa, mas agora não quero me advogar para além destas linhas.

Tenho 34 anos. Modéstia à parte cheguei bem até aqui. Me orgulho dos meus seios que, com um bom decote, atrapalham o fluxo do discurso dos amigos de Luciano. Vou mais além… Eu sou quente, e isso fica notório para qualquer um com cinco minutos de conversa. Sei que o meu quadril e o meu ventre sentem a chegada do tempo, mas de tão cedo que esta molecada de hoje começa, dificilmente uma menina de 25 anos consegue fazer frente comigo. Não é bravata! O que me assombra é outra coisa, para além da concorrência, para além mesmo de Luciano, que de todo, apesar da grosseria, não é mau, consegue ser carinhoso e, às vezes, preciso quando estou insegura. O que me assombra é a ideia de uma velhice sem filhos, ou sem netos, ou ainda de uma velhice encerrada em si mesma, no testemunhar constante e sem graça da finitude de mim, de meu corpo e de meu tempo. Não quero somente regar jardins, controlar remédios de pressão e viajar para Foz de Iguaçu no final do ano. E Luciano? Ele que pode chegar até lá ou não, tabagista inveterado é mais provável que não. E se chegar? Em que condições? Que tipo de velho ele seria? Provavelmente do tipo comum. Desde que meu pai morreu, os homens da idade de minha mãe só têm olhos para as mulheres da minha idade, ou menos.

O Nito veio deitar no meu colo, uma coisa é certa, se eu chegar lá, nos 70, 80... velha, terei gatos! Eles sempre têm assunto, estão sempre inventando alguma história.

Farei uma pausa breve. O Nito sabe dominar uma mulher. Ele se estatela no meu colo e exige olhares fixos enquanto acaricio o seu pelo. A menos que um inseto sobrevoe o escritório, logo a minha perna ficará dormente.

...

Quero falar sobre a época em que conheci Andréa e Joana. E quero dizer para minha filha Clara:

Londrina não é uma cidade tão grande assim e os bichos grilos são fáceis de achar. A UEL é um oásis de bicho-grilice em meio ao ruralismo e ao comércio da cidade. Dentro de minha privativa classe média “submersa e submissa”, como diria Luciano, desde a minha formatura, há mais de dez anos, estive afastada deste universo bricho-grilo. A vida se tornou muito séria e pouco descontraída. É certo que escapei dos ruralistas, mas sucumbi ao comércio. Dizem que o destino tem seu perfil no facebook e, por fim, fui marcada para um evento por um dos amigos de Luciano. Justamente para o encerramento do Festival Peroba Rosa, no Zerão. Não sabia nem que havia um festival, quanto mais de seu encerramento e, pior, esta já era a sua segunda edição. Sabia, contudo, que era de graça e perto o suficiente para ir à pé.

Luciano preferiu ficar em casa, o que achei bom no final das contas, ele atrapalharia o meu voyeurismo. “Festa estranha com gente esquisita”, como diria a canção. Descia a Borba Gato até o Zerão e quando cheguei ao gramado do campo de futebol, logo atrás da concha acústica, entendi tudo. Vi os mesmos hippies de carreira da universidade, só que dez anos mais velhos, assim como eu. Todavia foram os novos que me chamaram a atenção. E o povo estava ousado: mulheres de topless, cigarros de maconha e gente bonita… Quanta gente bonita! A juventude, de fato, é um capital.

Clara, minha filha, te confesso  que, para além dos meus preconceitos, algo me tocou ali. Uma ilusão? Até hoje estou disposta a reconhecer que foi uma alegria autêntica e eu, na minha pouca expansividade, no meu recolhimento que tu mesma terás a oportunidade de conhecer, à minha maneira, eu me encontrei eufórica. E nesta euforia fiquei posicionada estrategicamente atrás do que seria, na grama, a primeira fileira. E, assim, ficamos dispostos: eu, a primeira fileira e a banda Caburé Canela.

Descrever o som da banda é tarefa árdua e sem sentido -  que tu escutes no futuro e compreendas, ou faças um cálculo da paisagem sonora, dos afetos e das coisas que te digo. Quem sabe descrevendo a primeira fileira, de gente de roupa simples, às vezes praieira, ou diria igapoeira - para além das academias ao redor e da cultura fitness - ou ainda das batas indianas, das saias de chita, das regatas surradas, sei lá… De uma turma bastante à vontade e que dançava e que pulava e que cantava junto… Clara, foi nesse apanhado de coisas estranhas a mim, fora de minha rotina, fora de tudo o que era sabido e prático, que eu vi Joana e Andréa se beijarem, na primeira fileira, selando a minha euforia, a minha apoteose. E eu lá no meu lugar supus, naquele momento, de uma forma estranha, que éramos parte de um todo, como uma constelação, e, naquele momento, em mim uma porta se abriu…

Lindas como lindo era o meu olhar sobre as duas. E me perguntei se tinha um lugar ali para mim, naquela felicidade, naquele entusiasmo? Eu posso viver aquilo tudo? À minha maneira, Clara, eu já estava a caminho, ou, talvez, antes mesmo daquilo tudo, quando decidi sair sozinha de casa, só para ver no que daria… Ou antes mesmo de tudo isso que eu te disse agora.

Desde a separação de Otávio, comecei a contabilizar minha vida até então - sim, Clara, digo contabilizar, palavra pesada, porém, exata na minha visão de mundo, e se tu puxares à Joana, ficarás de cabelo em pé em várias oportunidades, mas há de entenderes e de me aceitares como eu sou pelo mesmo motivo... Joana é uma flor de pessoa! Pois bem…Me separei de Otávio e aos poucos de algumas ideias. Mãe não poderia ser, tenho síndrome de ovário policístico severa. Bem…Talvez até pudesse, porém, até o final do Peroba Rosa não estava disposta a arcar com o custo emocional e mesmo financeiro do tratamento. Luciano nunca me pressionou, talvez, para não me cobrar por algo que eu não pudesse lhe dar. Ponto a favor de Luciano!

Descobri com Otávio que um casamento não era necessariamente para vida toda, o que, com um pouco mais de perspicácia, poderia ter aprendido com Henrique VIII. Aliás “VIII” e Otávio se parecem…Bobagens! Antes de Otávio a minha mãe, ou melhor, a sua avó, deveria ser satisfeita em suas expectativas. Ela que casou grávida no civil, sempre sonhou para a sua filha, ou para si própria, um casamento com “doce, sorvete e guaraná”, como diria a cantiga, e aquelas coisas todas de gente, padre, padrinhos e vestidos longos e bolos enormes que custam os olhos da cara. Satisfiz a sua vontade e pronto! De lá para cá, procuro ponderar mais os meus sacrifícios, quando os faço! Espero que tu puxes neste ponto a Andréa, decidida e a mais “Clara” de nós quatro.

Agora, cá entre nós, sem saber de Andréa, eu me orgulho de ser, senão sua mãe biológica, a sua autora intelectual, e que isso fique claro! Desculpe, não quero ser a mãe que fabrica dívidas de gratidão, também não apagarei de imediato estas últimas linhas. Devo editá-las! De fato, tomei a iniciativa de conhecer Andréa e Joana, de estreitar a nossa amizade e, por fim, de termos você, juntos. E, por que não? Apesar das diferenças, que são muitas, uma coisa eu posso te afirmar e, confesso, fico mesmo orgulhosa: nós somos do bem! Somos capazes de amar com respeito, temos entre nós a lua em aquário e uma fortíssima amizade nos une, mesmo entre eu e Luciano, acima e apesar de tudo, somos amigos e avessos às normatizações sem sentido.

Passei a manhã escrevendo. Luciano veio me perguntar se temos almoço pronto, o que me fez lembrar de Otávio, torci o nariz e ele entendeu tudo. Saiu para buscar marmita…enquanto isso, comerei uma fruta. Pausa!

...

Nunca mais isto tinha acontecido. Escrever. Quando escrevo fico perambulando pelo apartamento, esqueço de ir ao banheiro, que tenho fome, esqueço do tempo e o dia passa. Quando paro de escrever, a história continua por si mesma.

Pois bem…Fiquei dando risada sozinha. Escrevo agora para alguém que não seja nem mãe e nem filha. Uma amiga talvez, ou um amigo confidente. Lembrei de quando contei ao Luciano a ideia de termos um filho à quatro, ele ficou em silêncio. Ao invés de pensar na paternidade e no filho que viria, ficou imaginando como seria a sua feitura. Conheço a cara de Luciano, ele não conseguiu disfarçar o seu entusiasmo: ménage à catre, beijo grego, golden shower, todo repertório de pornografia barata deve ter passado pela sua cabeça. E pensa que eu não sei que ele não perdeu essa mania de ver pornografia pela internet – apaga o histórico do navegador e deixa o vírus no hd! Por maldade, ou sabedoria de minha parte, o deixei com as suas fantasias, afinal, não levei um não como resposta.

Escolhemos Joana, digo Andréa e eu, Luciano ficou de fora da escolha. Joana, ela própria se escolheu. Sabia que ela aceitaria. É a mais, digamos, “maternal” de nós três, a mais doce e a que mais paparicava os filhos de nossos amigos, acho mesmo que lhe batia uma tristeza nessas ocasiões. Ela mesma confessou que pensava em adotar uma criança.

Joana está sempre de bom humor e a nosso favor estava o seu regularíssimo ciclo menstrual, eu digo que Luciano tem mais TPM que Joana. Por sua vez, Luciano, por desconfiômetro de minha permissividade e pudor, não perguntou como faríamos a concepção, soube quase de véspera e quando soube, de mulato que é, conseguiu ficar vermelho de sem graça. Dei risada: flagrei a sua verdade e ele a minha astúcia. E seguem as questões de gênero.

Nos reuníamos aqui ou lá, no período fértil de Joana. “Cada um no seu quadrado”, como diria a canção, Joana e Andréa, Luciano e eu. Excitava Luciano – coisa que ele bem sabe fazer sozinho – que ejaculava num pote de vidro, recolhíamos o sêmen numa seringa e eu mesma a levava até Andréa, que já havia feito as preliminares com Joana. Simples assim, não havia flores, jogos de sedução ou malabarismos sexuais. Ao todo foram três tentativas até que Andréa me perguntou se não era melhor tentarmos “algo mais próximo” e completou:

- Por que nós não vamos às vias de fato?

- Como assim?

- Como assim “como assim”? Sexo, pô! Com penetração no final, Joana mais Luciano...

Fiquei sem reação. A princípio não disse nada a Luciano. Fui progressista demais ao dar a ideia de um filho à quatro. Na minha cabeça, até o presente momento, prevalecem as vantagens: Clara terá provavelmente uma rede de afeto muito mais rica do que a maioria dos casais de hoje, encerrados em seus apartamentos, nas suas rotina de trabalho, de famílias diminutas, como tantos londrinenses adotivos. Por outro lado, temos Joana, pé-vermelho nativa de pai e mãe e tios e primos e etc.

Sobre as desvantagens: bem...eu me pergunto como ficará a nossa filha entre quatro autoridades paternas? E mesmo entre nós? Como nos entenderemos? Nos entenderemos? Depois da proposta de Andréa, fiquei alguns dias sem conseguir olhar diretamente nos seus olhos. Raiva? Não sei. Senti um constrangimento. Com o tempo a própria Andréa tomou a dianteira e veio conversar comigo, garantiu que era tudo em nome da concepção. Não sei. Fica sempre um ruído nisso tudo. Entre pessoas isso é uma constante, digo, entre as pessoas e a linguagem, por mais que eu admita que a franqueza é uma das virtudes de Andréa.

Partimos para uma solução formal, fomos a uma clínica de reprodução humana na Avenida Bandeirantes. Dinheiro não previsto. No todo, porém, é muito mais caro criar e educar um filho. Fizemos todos os procedimentos até que…Ufa! Chegou Luciano com a marmita! Façamos outra pausa!


Agora são onze da noite. Depois do almoço fomos à casa de Andréa e Joana, que recebiam a visita de dois amigos da cidade natal de Andréa, do interior de São Paulo. Eles nos presentearam com um macacãozinho de flanela amarela. Me dei conta de que foi o primeiro presente e a primeira peça de roupa do enxoval de nossa filha. Lembramos do ultrassom, de sua mãozinha, de sua cabecinha careca. Estava tudo muito agradável até que uma das visitas perguntou qual era mesmo o nome que  havíamos escolhido para a nossa filha... Olhares e olhares, e o silêncio quebrado por Joana:

- Bem…Eu pensei em Lua.

- E Clara? Indaguei. Lembra que eu tinha comentado sobre Clara e vocês acharam um nome bonito.

- Éééé...Disse Andréa, cuja franqueza nesta hora vacilou. E Luciano fechando o tempo com chave de ouro falou:

- Amor, e se ela puxar ao pai? E se ela for mulata como eu? Clara é um nome problemático, não que ela vai ter que se chamar de Mulata de Oliveira, como fariam o Caetano e o Gil, mas...

Pronto! Um chiste de Luciano e todos riram, menos eu. Mais uma piadinha fora de hora que entrou no rol dos 70%, aquele de qual não acho a menor graça, acrescida ainda de minha prévia contrariedade em relação à Andréa e Joana com a sua Lua. Que “Lua” o quê? Imagina os amigos de nossa filha: “Sai prá lá que hoje ela tá de Lua!”; “A Lua é minguante antes do almoço, depois ela fica cheia!"; “Tira o copo da Lua senão ela fica cheia… Ha, ha, ha!”. Será um prato cheio aos Lucianos do mundo, piadista de última hora. E parecia mesmo, naquela hora, que todos estavam rindo de mim, da minha cara. Foi o suficiente:

- Já chega! Eu quero ir prá casa!

- Mas, amor!

- Se tu quiseres, tu ficas! Eu vou prá casa! Tchau e boa noite prá vocês!

E assim voltamos, Luciano e eu, sem trocar uma palavra. Agora há pouco me pediu desculpas. “Me deixa quieta, vai!”, respondi, respondi não, adverti. É o melhor para nós dois, ele lá, eu cá tomando um vento na cabeça. Lá se foi a minha inspiração pelo ralo da plenária.  Paciência! Pelo jeito, minha filha, Clara não serás.

São onze e quinze da noite, esta Lua não me desce… Amanhã é segunda-feira, a semana apenas começou!

...

Viemos de madrugada

Ilhas de sonhos, torrentes

Donde a Lua mais cadente

Assiste a...



Hoje é segunda, três e meia da manhã. Às seis e meia saio de casa, às quinze para as oito estarei a postos para a abertura da loja. Eis acima um quase acróstico, eu diria que este me foi revelado em sonho e o último verso, ainda incompleto, estaria agora coberto por uma nebulosa onírica, como um enigma contido nele próprio. Não foi bem o caso. A quase verdade foi que me deu na venta, entre o sonho e a vigília, um bailado de palavras: “Luciano, às vezes, me deixa puta da vida... e a vida? Ela é o que é meu irmão... como diria a canção... vida, minha filha, olha o que é que eu fiz, deixei a fatia mais doce da vida... vida, minha filha, vida! É Vida, lógico que é Vida, é Vida!”. No entusiasmo do insight, na eureca deste batismo, acordei Luciano:

- Lu, é Vida! É Vida, Lu!

- Ai! O que, o que....

- É Vida, Lu! A nossa filha, o nome da nossa filha é Vida!

- Porra, Camilaaaa! É segunda-feira, são duas da manhã! Me deixa dormir! Cacete!

- Grosso! Deve tá de TPM!

Saí do quarto. Não esmoreci, peguei o telefone e liguei para Joana e Andréa, contava com o entusiasmo e a sensibilidade de Joana:

- Alô! Voz rouca:

- Joana, é a Camila! É com a senhorita mesmo que eu quero falar!

- Oi... tá tudo bem? Bocejante.

- Sim, claro! O que que tu me dizes de Vida? Vida não é um nome bonito?

- Ah! É sim, Ca! Pode ser... Ca, sabe o que que é? A Dé tá dormindo. Ela acorda bem cedo hoje, eu te ligo no final da tarde. Pode ser? Pode ser? Alô!

- Tá... Tudo bem, tudo bem. Depois a gente se fala... um beijo!

- Beijo... tchau!

- Tchau!

Exagerei? Sim, certamente. Calculei com o instrumento errado, meu entusiasmo não deixou ver. Raramente dou vazão ao entusiasmo, calculei mal pela falta de prática talvez. Fui arrebatada pela Vida, pelo menos desta vez me deixei arrebatar. Queria dividir uma alegria, principalmente com Joana, entre nós o nome Vida concilia sentidos, sei disso. Além do mais, uma vez que Joana fora cativada pela Vida, Andréa seguirá no rumo. A graciosidade de Joana é o ponto franco de Andréa. Já Luciano... Bem... Ele não deve se opor. Contrariando a nossa “democracia racial”, Clara pode não ser um bom nome se a nossa filha for mulatinha como Luciano. E, depois, o Lu tem um passado político que deve ser respeitado, a questão racial sempre o tocou e se ele ainda consegue brincar, sair pela via do humor, tanto melhor! Foi um dos motivos que nos aproximou, sou apegada aos 30% que me fazem rir, do contrário seria refém constante de minha seriedade.

Não consigo terminar meu acróstico! Vou puxar mais um cochilo antes de começar a semana para valer.

...

Dez da noite. Maravilha! A Joana, minha bichogrilesca mor, acabou de ligar, disse que achou Vida um nome lindo, “coisa de quem acordou inspirada”, ela disse. Falo tanto e tão bem de Joana que receio que Luciano fique com ciúmes. Bobagens!

Chegamos à décima quinta semana, tanta coisa aconteceu. Em um momento como este, tão especial, e eu não consigo compartilhar nada com a minha mãe. Talvez uma parte do que escrevo de domingo para cá seja pura procrastinação, ou esteja apenas ensaiando em busca das palavras perfeitas, como aquelas que faltam no último verso do acróstico. “Se eu falasse a língua dos anjos”. Existem várias formas de dizer a verdade e a mais simples é dizê-la:

- Mãe, a senhora vai ser avó!

- Como assim, minha filha? E o seu ovário?

- A Joana me emprestou o dela?

- “?”

- É a Joana, aquela nossa amiga que a senhora conheceu no meu aniversário!

- “?”

- Sim! Ela me emprestou o ovário, o óvulo e agora nós vamos ser pais! Eu, Lu, Joana e Andréa!

- “?”

O que passará naquela cabecinha? Acho a Dona Odete um tanto, digamos, “limitada” para certos assuntos, parece que eu a vejo agora dizendo “dá licença de eu ser limitada? Pô!”. Talvez eu esteja errada, talvez eu erre no cálculo mais uma vez e, desta vez, pela arrogância de achar que só eu estou aqui viva, em transformação num mundo em transformação. Logo ela que me ensinou a gostar de poesia! Quem sabe a minha mão – ato falho datilográfico, era “minha mãe”... Continuando: Quem sabe a minha mãe não me ajudaria na conclusão do acróstico? Ou não faria os seus para a neta? De certo ficaria um tanto Pollyanna. De certo sim, de certo não...

Está decidido! Neste final de semana iremos a Palmital dar a notícia pessoalmente a Dona Odete!

...



Londrina, 17 de dezembro de 2054

Vida, minha filha.



Chegamos de Foz ontem à tarde.

Lá de pertinho, aos pés das Cataratas somos tão pequenos! Mesmo na correnteza, meu coração se aquietou. Preciso voltar mais vezes!

Volume total: quase o nosso bote virou! Enquanto uns rezavam prá tudo quanto é santo, outros xingavam o nosso timoneiro. Só não disseram que ele era bonito, de resto ele escutou um monte... Luciano era o nome dele.

Saudades! O Lu me fez rir da cara da morte. “Passa reto, minha Senhora! Volte amanhã!”, repetia diariamente na última semana. Quem sabe não tenha barganhado com a dita um tempo a mais? Deus o livre! Como é que pode, né?

Minha Filha, na minha garimpagem diária, ou em minha arqueologia digital – mania de gente velha, recentemente adquirida – encontrei este texto nos confins de um daqueles antigos cartões de memória. E põe memória nisso! Já faz 36 anos. Minha nossa!

Reli, lembrei do tempo que a sua avó Odete era viva, da época que Joana estava grávida de ti, das alegrias e das tensões daqueles dias. Outros tempos!

Vida, se por acaso eu ainda tenha o orgulho como um defeito, então o meu processo de cura foi apenas parcial, ou como diria Leminski “só o erro tem vez”!



“E se tiver um momento me escreva um carinho”, lembra?



Gilberto está te mandando um beijo! E seguem os meus!



Te amo muito! Saudades!



Mãe Camila



P.S.: Deixo por último aquele acróstico que Vó Odete fez em forma de puxão de orelha sobre os meus receios de encarar a realidade, ou a verdade, ou a própria vida.



Varias são as fôrmas

Indiferente é a carne

Duro é o apego

Aquém da intuição


Fischer Seixas


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